POR ARIOVALDO UMBELINO
O Estado brasileiro não tem controle algum sobre seu território, aliás, nunca teve. O Incra deveria fazer periodicamente o recadastramento dos imóveis, mas não faz. O último foi feito em 1992 e atualizado em 1998. Nem os órgãos públicos nem os cartórios de registro de imóveis, ou seja, ninguém neste país é capaz de informar a parte das terras ocupadas legalmente e ilegalmente, ou melhor, as griladas. Nem mesmo o Estado é capaz de informar o total das terras públicas devolutas ou não.
Nunca um censo foi realizado no Brasil com tanta tecnologia avançada disponível. Tudo foi feito para que os resultados viessem a público rapidamente. Projetou-se um censo a fim de ser instrumento para o país conhecer o campo e planejar seu futuro. Entretanto, junto com os instrumentos digitais de coleta de dados, vieram os erros. Erros grosseiros que levaram o IBGE a adiar a divulgação, inclusive dos resultados preliminares, que foram muito mais dados da produção agrícola e pecuária municipal do que resultados efetivos do Censo 2006.
A análise geral do Censo Agropecuário 2006 revela três questões principais. Pela primeira vez, o IBGE se deu ao trabalho de comparar seus dados àqueles do Incra e mostrar suas diferenças conceituais das unidades estatísticas fundantes: estabelecimentos e imóveis.
O censo apresentou dados relativos ao conjunto do território brasileiro em hectares: área territorial total do país: 851,4 milhões; área total ocupada pelos estabelecimentos: 330 milhões; área total das terras indígenas: 126 milhões; área total das unidades de conservação ambiental: 72,3 milhões; área com corpos d’água: 12 milhões; e área urbanizada: 2,1 milhões. Mas a conta não fechou, ou seja, ficaram sobrando 309 milhões de hectares.
A solução adotada pelos técnicos do IBGE foi denominar esses 36% da superfície do país de "área com outras ocupações". No entanto, se eles incluíram todas as possibilidades de ocupação de fato, ficou faltando as "terras públicas devolutas". É isto mesmo: mais de um terço da área do país está cercada, mas não pertence a quem cercou. Os "proprietários" não têm os documentos legais de propriedade destas terras. Por isso, essas terras são omitidas nos levantamentos estatísticos tanto do IBGE como do Incra.
A segunda questão envolve o volume especial sobre a denominada "agricultura familiar". Essa conceituação tem sua origem no neoliberalismo. Nasceu com a intenção de apagar da memória e da história o conceito de camponês e o campesinato como sujeito social revolucionário do século XX. A função política desse volume é induzir a análise do campo pela lógica neoliberal, que esconde a dimensão dos estabelecimentos e, portanto, os indicativos analíticos da concentrada estrutura fundiária do país. Seu alvo preferencial são os movimentos sócio-territoriais em luta pela terra. Visou assim, retirar o seu mais potente elemento revelador da desigual distribuição da terra no Brasil. Foi transferida para as estatísticas a opção ideológica feita pelo governo atual. Nada contra o estudo em si, pois ele é legitimo. A questão está em torná-lo um volume do Censo 2006.
A terceira questão sinaliza a incômoda destruição gradativa do único instrumento estatístico de série histórica longa, que o país dispõe para conhecer sua realidade agrária. Basta comparar o volume de 2006 com o de 1995/1996, para ver que os técnicos atuais do IBGE sequer zelaram pela herança deixada pelos seus antecessores.
Um censo é um instrumento estatístico, por isso tem que sempre ampliar as possibilidades de desagregação dos dados, e não o contrário. Os técnicos do IBGE trataram de esconder ao máximo possível os dados da estrutura fundiária, particularmente as variáveis por estratos de área total. Ampliaram o que é positivo, a estratificação dos minifúndios, mas zelosamente agregaram os dados dos grandes estabelecimentos escondendo os latifúndios.
Ou seja, os estratos de área maiores chegavam a até 100.000 hectares no censo de 1995/1996. Foi reduzido para 2.500 hectares e mais. Foi uma no cravo e outra na ferradura. Deixaram também de divulgar a produção de vários produtos agrícolas por estrato de área total. Assim, impediram que se pudessem fazer estudos segundo esse critério, que revela o caráter da propriedade privada da terra, exceto se os interessados resolverem comprar os dados.
Sempre dominou no campo brasileiro o princípio da ilegalidade da ocupação das terras públicas pelos latifundiários. São esses 309 milhões de hectares de terras públicas devolutas ou não que somados aos 120 milhões de hectares de terras improdutivas dos grandes imóveis indicadas no primeiro documento do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003) que os sem terras não se cansam de denunciar. É por isso que os latifundiários travam combate sem trégua com os sem terras. E a maior parte da mídia acompanha e faz eco, mas os dados demonstram que a história está do outro lado, do lado dos sem terras.
Ariovaldo Umbelino é professor titular de Geografia Agrária da FFLCH-USP
O Estado brasileiro não tem controle algum sobre seu território, aliás, nunca teve. O Incra deveria fazer periodicamente o recadastramento dos imóveis, mas não faz. O último foi feito em 1992 e atualizado em 1998. Nem os órgãos públicos nem os cartórios de registro de imóveis, ou seja, ninguém neste país é capaz de informar a parte das terras ocupadas legalmente e ilegalmente, ou melhor, as griladas. Nem mesmo o Estado é capaz de informar o total das terras públicas devolutas ou não.
Nunca um censo foi realizado no Brasil com tanta tecnologia avançada disponível. Tudo foi feito para que os resultados viessem a público rapidamente. Projetou-se um censo a fim de ser instrumento para o país conhecer o campo e planejar seu futuro. Entretanto, junto com os instrumentos digitais de coleta de dados, vieram os erros. Erros grosseiros que levaram o IBGE a adiar a divulgação, inclusive dos resultados preliminares, que foram muito mais dados da produção agrícola e pecuária municipal do que resultados efetivos do Censo 2006.
A análise geral do Censo Agropecuário 2006 revela três questões principais. Pela primeira vez, o IBGE se deu ao trabalho de comparar seus dados àqueles do Incra e mostrar suas diferenças conceituais das unidades estatísticas fundantes: estabelecimentos e imóveis.
O censo apresentou dados relativos ao conjunto do território brasileiro em hectares: área territorial total do país: 851,4 milhões; área total ocupada pelos estabelecimentos: 330 milhões; área total das terras indígenas: 126 milhões; área total das unidades de conservação ambiental: 72,3 milhões; área com corpos d’água: 12 milhões; e área urbanizada: 2,1 milhões. Mas a conta não fechou, ou seja, ficaram sobrando 309 milhões de hectares.
A solução adotada pelos técnicos do IBGE foi denominar esses 36% da superfície do país de "área com outras ocupações". No entanto, se eles incluíram todas as possibilidades de ocupação de fato, ficou faltando as "terras públicas devolutas". É isto mesmo: mais de um terço da área do país está cercada, mas não pertence a quem cercou. Os "proprietários" não têm os documentos legais de propriedade destas terras. Por isso, essas terras são omitidas nos levantamentos estatísticos tanto do IBGE como do Incra.
A segunda questão envolve o volume especial sobre a denominada "agricultura familiar". Essa conceituação tem sua origem no neoliberalismo. Nasceu com a intenção de apagar da memória e da história o conceito de camponês e o campesinato como sujeito social revolucionário do século XX. A função política desse volume é induzir a análise do campo pela lógica neoliberal, que esconde a dimensão dos estabelecimentos e, portanto, os indicativos analíticos da concentrada estrutura fundiária do país. Seu alvo preferencial são os movimentos sócio-territoriais em luta pela terra. Visou assim, retirar o seu mais potente elemento revelador da desigual distribuição da terra no Brasil. Foi transferida para as estatísticas a opção ideológica feita pelo governo atual. Nada contra o estudo em si, pois ele é legitimo. A questão está em torná-lo um volume do Censo 2006.
A terceira questão sinaliza a incômoda destruição gradativa do único instrumento estatístico de série histórica longa, que o país dispõe para conhecer sua realidade agrária. Basta comparar o volume de 2006 com o de 1995/1996, para ver que os técnicos atuais do IBGE sequer zelaram pela herança deixada pelos seus antecessores.
Um censo é um instrumento estatístico, por isso tem que sempre ampliar as possibilidades de desagregação dos dados, e não o contrário. Os técnicos do IBGE trataram de esconder ao máximo possível os dados da estrutura fundiária, particularmente as variáveis por estratos de área total. Ampliaram o que é positivo, a estratificação dos minifúndios, mas zelosamente agregaram os dados dos grandes estabelecimentos escondendo os latifúndios.
Ou seja, os estratos de área maiores chegavam a até 100.000 hectares no censo de 1995/1996. Foi reduzido para 2.500 hectares e mais. Foi uma no cravo e outra na ferradura. Deixaram também de divulgar a produção de vários produtos agrícolas por estrato de área total. Assim, impediram que se pudessem fazer estudos segundo esse critério, que revela o caráter da propriedade privada da terra, exceto se os interessados resolverem comprar os dados.
Sempre dominou no campo brasileiro o princípio da ilegalidade da ocupação das terras públicas pelos latifundiários. São esses 309 milhões de hectares de terras públicas devolutas ou não que somados aos 120 milhões de hectares de terras improdutivas dos grandes imóveis indicadas no primeiro documento do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003) que os sem terras não se cansam de denunciar. É por isso que os latifundiários travam combate sem trégua com os sem terras. E a maior parte da mídia acompanha e faz eco, mas os dados demonstram que a história está do outro lado, do lado dos sem terras.
Ariovaldo Umbelino é professor titular de Geografia Agrária da FFLCH-USP
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