Apesar das conquistas tecnológicas, do crescimento
das riquezas e da invenção de armas cada vez mais letais, continuamos – todos,
simplesmente como seres humanos – a estar expostos às catástrofes. Com uma
diferença em comparação com todas as tragédias do passado: o caráter global
das catástrofes atuais, que afetam todo o mundo, a humanidade inteira, sem
diferença de nacionalidade, de cultura, de língua, de religião e até de
condições econômicas e políticas.
A opinião é do jurista italiano Luigi
Ferrajoli, professor da Universidade de Roma Tre e ex-juiz de
1967 a 1975. O artigo foi publicado em Il Manifesto, 17-03-2020. A
tradução é de Moisés Sbardelotto.
O coronavírus não conhece fronteiras. Ele
já se espalhou para quase todo o mundo e certamente por toda a Europa.
É uma emergência global que exigiria uma resposta global. Portanto, podemos
tirar dois ensinamentos disso, que nos forçam a refletir sobre o nosso futuro.
O primeiro ensinamento diz respeito à nossa
fragilidade e, ao mesmo tempo, à nossa total interdependência.
Apesar das conquistas tecnológicas, do crescimento das riquezas e da invenção
de armas cada vez mais letais, continuamos – todos, simplesmente como seres
humanos – a estar expostos às catástrofes, algumas provocadas por nós
mesmos com a nossa poluição irresponsável, outras, como a atual epidemia, que
consistem em calamidades naturais.
Com uma diferença em comparação com todas as
tragédias do passado: o caráter global das catástrofes atuais, que afetam todo
o mundo, a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, de cultura, de
língua, de religião e até de condições econômicas e políticas.
Infelizmente, dessa pandemia planetária, segue-se
uma dramática confirmação da necessidade e da urgência de realizar um
constitucionalismo planetário: aquele proposto e promovido pela escola
“Constituinte Terra”, que inauguramos em Roma no dia 21
de fevereiro.
O segundo ensinamento diz respeito à necessidade de
que, diante de emergências dessa natureza, sejam adotadas medidas eficazes e,
sobretudo, homogêneas, a fim de evitar que a variedade dos procedimentos
adotados, em muitos casos totalmente inadequados, acabe favorecendo o contágio
e multiplicando os danos para todos.
Em vez disso, cada país adota medidas diferentes,
às vezes totalmente insuficientes como as tomadas nos Estados Unidos e
na Inglaterra, cujos governos estão subestimando o perigo para não prejudicar
as suas economias. Até mesmo na Europa, os 27 países membros se
movem de modo esparso, cada um adotando estratégias diferentes: das medidas
rigorosas da Itália e da Espanha às mais
brandas da França e da Alemanha. No entanto, pelo
menos no que diz respeito à Europa, uma gestão comum da epidemia seria até
imposta pelos Tratados.
O artigo 168 do Tratado sobre o
Funcionamento da União, dedicado à saúde pública, depois de afirmar que “a
União é a garantia de um nível elevado de proteção da saúde humana”, estabelece
que “os Estados membros coordenam entre si, em ligação com a Comissão, as
respectivas políticas” e que “o Parlamento Europeu e o
Conselho também podem adotar medidas para proteger a saúde humana, em
particular para lugar contra os grandes flagelos que se propagam
além-fronteiras”.
Além disso, o artigo 222, intitulado “Cláusulas
de Solidariedade”, estabelece que “a União e os Estados
membros agem conjuntamente em espírito de solidariedade caso um Estado
membro seja vítima de uma calamidade natural”.
É possível que a União Europeia seja
capaz de impor aos Estados membros apenas sacrifícios e políticas de
austeridade em benefício dos saldos orçamentários, e não também medidas de
saúde que beneficiem a vida dos seus cidadãos?
A Comissão Europeia tem entre os
seus componentes um comissário para a saúde, outro para os direitos
sociais, outro ainda para coesão e as reformas, e até um comissário para a
gestão de crises. O que eles estão esperando para tomar esta emergência em mãos
e promover em toda a Europa, com diretrizes vinculantes, medidas homogêneas e
eficazes destinadas a enfrentá-la?
Mas, acima de tudo, o caráter global dessa epidemia
confirma a necessidade – já evidente em matéria de agressão ao ambiente, mas
tornada ainda mais visível e urgente pelo terrível saldo cotidiano de mortos e
infectados –, de dar origem a uma Constituição da Terra que preveja
garantias e instituições à altura dos desafios globais e da proteção da vida de
todos.
Já existe uma Organização Mundial da
Saúde (OMS). Mas ela não tem os meios e os aparatos necessários
sequer para levar aos países pobres os 460 remédios que salvam vidas
e que, há 40 anos, ela estabeleceu que deveriam ser acessíveis a todos, e cuja
falta provoca 8 milhões de mortes por ano.
Hoje, a epidemia global afeta a
todos, sem distinção entre ricos e pobres. Por isso, deveria oferecer uma
oportunidade para fazer da OMS uma verdadeira instituição de
garantia global, dotada dos poderes e dos meios econômicos necessários para
enfrentar a crise com medidas racionais e adequadas, não condicionadas por
interesses políticos ou econômicos contingentes, mas voltadas a garantir a vida
de todos os seres humanos simplesmente por serem quem são.
Para esse salto civilizacional – a realização de um
constitucionalismo global e de uma esfera pública planetária –
já existem todos os pressupostos hoje: não apenas os institucionais, mas também
os sociais e os culturais. Entre os efeitos dessa epidemia, de fato, há uma
reavaliação da esfera pública no senso comum, uma reafirmação do primado do
Estado em relação às Regiões em termos de saúde e, sobretudo,
o desenvolvimento – depois de anos de ódio, de racismo e
de sectarismos – de um senso extraordinário e inesperado
de solidariedade entre as pessoas e entre os povos, que está
se manifestando nas ajudas provenientes da China, nas canções
comuns e nas manifestações de afeto e gratidão nas sacadas em relação aos
médicos e aos enfermeiros, em suma, na percepção de que somos um único povo
da Terra, reunido pela condição comum em que todos vivemos.
Talvez, a partir dessa tragédia, possa nascer
finalmente uma consciência geral voltada ao nosso destino comum, que, por isso,
requer um sistema comum de garantia dos nossos direitos e das nossa
convivência pacífica e solidária.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/
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