sábado, 28 de março de 2020

O vírus põe a globalização de joelhos.



Apesar das conquistas tecnológicas, do crescimento das riquezas e da invenção de armas cada vez mais letais, continuamos – todos, simplesmente como seres humanos – a estar expostos às catástrofes. Com uma diferença em comparação com todas as tragédias do passado: o caráter global das catástrofes atuais, que afetam todo o mundo, a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, de cultura, de língua, de religião e até de condições econômicas e políticas.
A opinião é do jurista italiano Luigi Ferrajoli, professor da Universidade de Roma Tre e ex-juiz de 1967 a 1975. O artigo foi publicado em Il Manifesto, 17-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O coronavírus não conhece fronteiras. Ele já se espalhou para quase todo o mundo e certamente por toda a Europa. É uma emergência global que exigiria uma resposta global. Portanto, podemos tirar dois ensinamentos disso, que nos forçam a refletir sobre o nosso futuro.
O primeiro ensinamento diz respeito à nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, à nossa total interdependência. Apesar das conquistas tecnológicas, do crescimento das riquezas e da invenção de armas cada vez mais letais, continuamos – todos, simplesmente como seres humanos – a estar expostos às catástrofes, algumas provocadas por nós mesmos com a nossa poluição irresponsável, outras, como a atual epidemia, que consistem em calamidades naturais.
Com uma diferença em comparação com todas as tragédias do passado: o caráter global das catástrofes atuais, que afetam todo o mundo, a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, de cultura, de língua, de religião e até de condições econômicas e políticas.
Infelizmente, dessa pandemia planetária, segue-se uma dramática confirmação da necessidade e da urgência de realizar um constitucionalismo planetário: aquele proposto e promovido pela escola “Constituinte Terra, que inauguramos em Roma no dia 21 de fevereiro.
O segundo ensinamento diz respeito à necessidade de que, diante de emergências dessa natureza, sejam adotadas medidas eficazes e, sobretudo, homogêneas, a fim de evitar que a variedade dos procedimentos adotados, em muitos casos totalmente inadequados, acabe favorecendo o contágio e multiplicando os danos para todos.
Em vez disso, cada país adota medidas diferentes, às vezes totalmente insuficientes como as tomadas nos Estados Unidos e na Inglaterra, cujos governos estão subestimando o perigo para não prejudicar as suas economias. Até mesmo na Europa, os 27 países membros se movem de modo esparso, cada um adotando estratégias diferentes: das medidas rigorosas da Itália e da Espanha às mais brandas da França e da Alemanha. No entanto, pelo menos no que diz respeito à Europa, uma gestão comum da epidemia seria até imposta pelos Tratados.
O artigo 168 do Tratado sobre o Funcionamento da União, dedicado à saúde pública, depois de afirmar que “a União é a garantia de um nível elevado de proteção da saúde humana”, estabelece que “os Estados membros coordenam entre si, em ligação com a Comissão, as respectivas políticas” e que “o Parlamento Europeu e o Conselho também podem adotar medidas para proteger a saúde humana, em particular para lugar contra os grandes flagelos que se propagam além-fronteiras”.
Além disso, o artigo 222, intitulado “Cláusulas de Solidariedade”, estabelece que “a União e os Estados membros agem conjuntamente em espírito de solidariedade caso um Estado membro seja vítima de uma calamidade natural”.
É possível que a União Europeia seja capaz de impor aos Estados membros apenas sacrifícios e políticas de austeridade em benefício dos saldos orçamentários, e não também medidas de saúde que beneficiem a vida dos seus cidadãos?
Comissão Europeia tem entre os seus componentes um comissário para a saúde, outro para os direitos sociais, outro ainda para coesão e as reformas, e até um comissário para a gestão de crises. O que eles estão esperando para tomar esta emergência em mãos e promover em toda a Europa, com diretrizes vinculantes, medidas homogêneas e eficazes destinadas a enfrentá-la?
Mas, acima de tudo, o caráter global dessa epidemia confirma a necessidade – já evidente em matéria de agressão ao ambiente, mas tornada ainda mais visível e urgente pelo terrível saldo cotidiano de mortos e infectados –, de dar origem a uma Constituição da Terra que preveja garantias e instituições à altura dos desafios globais e da proteção da vida de todos.
Já existe uma Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas ela não tem os meios e os aparatos necessários sequer para levar aos países pobres os 460 remédios que salvam vidas e que, há 40 anos, ela estabeleceu que deveriam ser acessíveis a todos, e cuja falta provoca 8 milhões de mortes por ano.
Hoje, a epidemia global afeta a todos, sem distinção entre ricos e pobres. Por isso, deveria oferecer uma oportunidade para fazer da OMS uma verdadeira instituição de garantia global, dotada dos poderes e dos meios econômicos necessários para enfrentar a crise com medidas racionais e adequadas, não condicionadas por interesses políticos ou econômicos contingentes, mas voltadas a garantir a vida de todos os seres humanos simplesmente por serem quem são.
Para esse salto civilizacional – a realização de um constitucionalismo global e de uma esfera pública planetária – já existem todos os pressupostos hoje: não apenas os institucionais, mas também os sociais e os culturais. Entre os efeitos dessa epidemia, de fato, há uma reavaliação da esfera pública no senso comum, uma reafirmação do primado do Estado em relação às Regiões em termos de saúde e, sobretudo, o desenvolvimento – depois de anos de ódio, de racismo e de sectarismos – de um senso extraordinário e inesperado de solidariedade entre as pessoas e entre os povos, que está se manifestando nas ajudas provenientes da China, nas canções comuns e nas manifestações de afeto e gratidão nas sacadas em relação aos médicos e aos enfermeiros, em suma, na percepção de que somos um único povo da Terra, reunido pela condição comum em que todos vivemos.
Talvez, a partir dessa tragédia, possa nascer finalmente uma consciência geral voltada ao nosso destino comum, que, por isso, requer um sistema comum de garantia dos nossos direitos e das nossa convivência pacífica e solidária.

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