domingo, 30 de setembro de 2012

“Luta pela terra não deve ter limites”, defende Sánchez Gordillo

Postado pelo prof. Antonio Tomaz Jr. - direto do "CEGeT"

“Luta pela terra não deve ter limites”, defende Sánchez Gordillo

Nome mais conhecido entre partidários da reforma agrária na Espanha, Juan Manuel Sánchez Gordillo liderou marcha de trabalhadores em agosto e chamou a atenção ao tomar alimentos de um supermercado e distribuir a famílias pobres. Chamado de “Robin Hood espanhol” por publicações como o Financial Times, ele justifica a necessidade de ações de desobediência civil em entrevista exclusiva a Carta Maior.

Guilherme Kolling e Naira Hofmeister, de Marinaleda, Espanha

Marinaleda - Juan Manuel Sánchez Gordillo é um nome conhecido na Espanha desde o início dos anos 1980, quando liderou trabalhadores do pequeno município de Marinaleda na ocupação de um latifúndio improdutivo. Prefeito da localidade e deputado na Andaluzia, ele ainda é um ativista importante da reforma agrária.

Voltou ao noticiário em agosto, ao liderar uma marcha do Sindicato Andaluz de Trabalhadores (SAT) pela distribuição de terras públicas a pequenos produtores, contra cortes nos gastos sociais e por punição dos banqueiros responsáveis pela crise. O grupo ocupou agências bancárias, palácios e supermercados de multinacionais, de onde levou alimentos sem pagar para distribuir a famílias necessitadas.

Esgotado ao final da caminhada de um mês pelo sul da Espanha, Gordillo recebeu a reportagem da Carta Maior em sua casa no dia 9 de setembro. Nesta entrevista, ele defende as ações de desobediência civil e argumenta que a forma de luta pela terra não deve ter limites.
Ainda avalia que a reforma agrária hoje na Espanha é mais necessária do que no século XIX, sustenta que a fixação do jovem no campo passa por receber as mesmas oportunidades que teria na cidade, e elogia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil, para ele o mais importante movimento de massas do mundo na atualidade.

Também demonstra esperança nos Indignados, fala sobre o Fórum Social Mundial e comenta o sistema de participação popular no município que comanda há três décadas. “A democracia direta é um veículo imprescindível para uma nova esquerda e um novo mundo”.

Carta Maior - A ocupação de latifúndios improdutivos é uma estratégia utilizada há décadas no Brasil para lutar pela reforma agrária. Esse tipo de ação ainda é válido ou há outras formas melhores de reivindicar a distribuição de terras?

Sanchez Gordillo - Penso que a terra, como o ar e a água, forma parte da natureza e, portanto, não deve servir para o enriquecimento privado, mas sim para a comunidade que habita uma determinada área. A terra, a água, as sementes devem formar parte dessa comunidade basicamente para a produção de alimentos, como direito, não como negócio. É o que eu chamaria de soberania alimentar.

A forma ideal de reivindicar que a terra esteja a serviço da comunidade é fazendo marchas, protestos ou tomando supermercados como vocês fizeram recentemente?

Creio que a forma de luta não deve ter limites. E há que se ter imaginação para abrir novos métodos de luta que o sistema custe a superar. Porque o clássico movimento de luta, de alguma maneira, o sistema teve a capacidade de absorvê-lo e convertê-lo em algo que não inquieta ao seus interesses. Portanto, é imprescindível ter muita imaginação no método de luta, claridade nos objetivos e constância na peleia.

Qual é a importância da reforma agrária hoje na Espanha?

Na Andaluzia (comunidade que reúne as províncias do sul do país), 2% dos proprietários detém 50% das terras cultiváveis. É uma estrutura quase feudal, que não é própria dos nossos dias. Diria que a reforma agrária no século XXI é mais necessária do que no século XIX, porque o alimento deve cumprir um papel estratégico. No futuro, quem controlar os alimentos vai controlar o planeta. Da mesma forma que há guerra pelo petróleo, acredito que haverá por água potável e alimentos. Toda a pessoa tem que comer, então, não é razoável um sistema em que três quartas partes da humanidade passe fome e se joguem alimentos fora no mar.

É necessária essa reforma que ponha os recursos básicos da natureza a serviço do ser humano. O velho sistema de agricultura capitalista fracassou: aumentou a fome no mundo, vieram os transgênicos, apareceram monopólios financeiros que controlam todo o comércio mundial. Portanto, a reforma agrária é imprescindível, é uma luta em que estamos há muito tempo porque acreditamos que o futuro de uma Andaluzia livre e soberana dificilmente será feito sem uma reforma agrária, com todas as suas consequências.

E há uma janela na legislação espanhola que permita fazer essa reforma agrária?

Não. Teve na Segunda República uma lei de reforma agrária e (o ex-ditador Francisco) Franco a liquidou. Depois, em 1984, houve uma tentativa de reforma agrária por pressão do sindicatos, mas foi uma lei mais retórica do que real, não chegou a expropriar nem uma peseta (antiga moeda na Espanha). Havia tantos pré-requisitos e problemas burocráticos que, ao final, não serviu para absolutamente nada. Serviu simplesmente para que os terratenentes (“coronéis”) trocassem a titularidade da terra, dissimulando legalmente que eram grandes latifundiários.

Essa marcha entre agosto e setembro na Andaluzia foi a que reuniu mais apoiadores nos últimos anos. Como está a luta pela reforma agrária hoje?

Há uma mobilização que vem de baixo. O Estado diz que a reforma agrária é uma coisa do século XIX. Para nós, é do século XXI, é mais necessária do que nunca, é imprescindível. E é um tema que não deve preocupar somente o trabalhador rural, mas também aos consumidores. O que comemos todos os dias deve ser uma preocupação geral. E o que a marcha fez foi conectar as preocupações do campo com as da cidade, e, de alguma maneira, dar esse empurrão para que seja possível a reforma agrária em uma Europa que dá as costas para a terra.

Teria um efeito positivo nesse momento de crise na Europa?

Uma reforma agrária seria muito importante na Andaluzia, em Portugal... E sobretudo se fosse o início de um mundo diferente, onde os recursos se ponham a serviço do ser humano, onde a economia seja posta a serviço do homem e não o contrário.

No Brasil, a luta pela reforma agrária é liderada pelo MST. Qual é a sua avaliação do movimento?

É o movimento de massas mais importante que há no mundo ainda hoje. E penso que deve se potencializar e aprofundar para conseguir uma sociedade diferente, que, por certo, não é capitalista. E o MST é um movimento imprescindível no Brasil, país onde a terra está tão concentrada. Torço para que nenhuma burocracia o estrague e que o MST sempre funcione por seu objetivo primário.

A propósito de movimentos e de lutas no campo e na cidade, o mundo está atento aos Indignados, ou 15-M como dizem aqui na Espanha (referência ao 15 de maio de 2011, quando surgiu o movimento).

O 15-M foi um despertar espontâneo muito interessante. E há uma grande conexão conosco. Nesse momento, e depois dos últimos acontecimentos, dá para ver a possibilidade de unir uma boa parte da opinião pública e de setores produtivos para promover uma mudança real em todos os lugares.

Um dos dizeres do 15-M é “democracia real já”, pois o sistema atual não seria representativo nem democrático. As assembleias aqui em Marinaleda para discutir o orçamento e os problemas do município são uma tentativa desse ideal pregado pelos Indignados?

Nós levamos para a assembleia dos cidadãos qualquer tema ou problema do município. Em todos os assuntos - sindical, político... Temos um orçamento participativo, discutido bairro por bairro, até que em um encontro final de todos os vizinhos se toma a decisão sobre esse orçamento. Quando acertamos, acertamos muitos, e quando erramos, erramos muitos. Em qualquer caso, a melhor maneira de decidir é coletivamente. A democracia direta é um veículo imprescindível para uma nova esquerda e um novo mundo.

E qual é a sua avaliação do Fórum Social Mundial?

Me parece muito interessante esse encontro. Talvez, um defeito seja que se teoriza muito e se concretiza pouco. As reflexões são muito profundas e necessárias, porque anunciam um mundo melhor. Falta não apenas anunciar que um outro mundo é possível, mas também converter esse outro mundo em realidade.

O futuro do mundo depende muito do jovem. Uma questão que se coloca é como atrair esse jovem para a vida no campo, tendo em vista as atrações da cidade, carreiras universitárias... O campo será sempre uma segunda opção?

É possível que essa seja uma primeira opção do jovem sempre e quando se contemplem as mesmas possibilidades de desenvolvimento do ser humano em qualquer parte do país. Ou seja, que o mundo rural e o mundo urbano se assemelhem em termos de oportunidades. E que a agricultura e a agroindústria cumpram um papel muito mais decisivo do que o que tem nos dias de hoje.

O MST criou, em algumas comunidades do Brasil, escolas e universidades. Essa oportunidade de formação seria um exemplo disso?

Sim. Estive no Brasil visitando algumas comunidades, com um método próprio de ensino, com uma titulação própria. Essa é uma das grandes conquistas do MST. Que o assentado possa educar a sua gente com seus próprios valores, com sua maneira de entender a vida, para que essa cooperativa, esse assentamento tenham continuidade no futuro. Porque se há uma desconexão entre a rua e o meio, é impossível que se avance em um ideal de modelo agrícola diferente, com outros valores.

E o jovem de hoje está aberto a isso?

O jovem tem recebido muita carga da sociedade de consumo e do brilho da cidade. Faz falta uma revolução de valores - solidariedade, companheirismo. Aqui em Marinaleda tentamos através das assembleias, das manifestações, da rádio, da televisão, colocar esses novos valores que deem lugar a um ser humano novo. Se queremos um mundo diferente, precisamos não apenas de jovens, mas de jovens diferentes. Seria interessante que fizessem projetos pilotos no país em que se contemplassem todas as possibilidades de desenvolvimento que se encontra nas universidades. Para que seja atrativo, que as pessoas vejam que podem progredir no campo. Seria um exemplo de como conseguir um avanço no retorno do jovem ao campo.
Fonte: http://observatoriodoagreste.blogspot.com.br/

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Sabra e Chatila, um massacre a ser sempre lembrado

Escrito por Sâmia Gabriela Teixeira *   

A limpeza étnica sistemática de 1948 na Palestina, segundo Ilan Pappé, foi o principal acontecimento “constitutivo de sua história moderna”. Com o início da prática de limpeza de Israel, milhares de palestinos, expulsos ou aterrorizados, se refugiaram no Líbano em busca de abrigo e segurança. Segundo Pappé, tal limpeza foi praticamente eliminada da memória e consciência coletiva global, tornando, portanto, o direito à memória uma das ferramentas mais importantes para a resistência e luta do povo palestino. 
Quando em 1982 Israel invadiu o Líbano em busca da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), na época presidida por Iasser Arafat, o estado sionista encontrou então a situação perfeita para ocupar o país e aliar-se a um grupo fascista rumo ao poder. Bashir Gemayel, então presidente eleito do Líbano e carismático líder cristão no país, defendia uma política alinhada à dos Estados Unidos. Em entrevista concedida nos anos 80, ao ser questionado se era ou não aliado de Israel, Bashir explica que sua relação com o estado sionista não é permanente, e que, politicamente, alia-se a quem lhe for conveniente “tomando o máximo de vantagens e benefícios para o balanço de poder e o equilíbrio de poderes no Líbano”. Seu assassinato foi então o estopim para que um massacre de inocentes, sobretudo de palestinos refugiados, acontecesse com a ajuda prática de Israel.

Mas os planos de tal crime de guerra foram arquitetados durante encontros realizados no dia 15 de setembro, com o então Ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon, e líderes de uma mílicia libanesa falangista cristã ligada ao governo de Bashir, Elie Hobeika, Fadie Frem e Zahi Bustani. Nesse encontro, Sharon autorizava as tropas israelenses, responsáveis pelo cerco aos campos libaneses, a permitirem a entrada dos falangistas.
O historiador árabe Fawwaz Traboulsi descreve em seu livro História Moderna do Líbano os interesses firmados antes da morte do presidente Bashir, que planeja colocar em prática uma “solução radical” para equilibrar demograficamente o Líbano, “provocando um exôdo geral da população palestina” que, segundo ele, constituía “um povo em excesso” na região. Junto a responsabilidade destinada a Ariel Sharon e ao governo cristão libanês, o estado norte-americano também teve a sua participação ao retirar todas as suas forças de paz, responsáveis pela supervisão da saída da OLP, e ao evadir os destacamentos militares da região e pressionando, indiretamente, a retirada de forças francesas e italianas do local.

Na prática, os ataques aos campos de Sabra e Chatila podem ser definidos como um massacre de Deir Yassin revisitado, com as mesmas características crueis e de limpeza étnica executadas durante e a partir da Nakba palestina. O massacre deixou cerca de 4.000 pessoas entre mulheres, crianças e idosos mortas. Muitas delas, decapitadas, mutiladas ou desfiguradas.

O jornalista Odd Karsten Tveit, um dos primeiros a entrar nos campos de refugiados após o massacre, descreveu em relato para a TV Al Jazeera cenas de horror. Em um primeiro momento, visitou um hospital e encontrou um jovem garoto ferido nas pernas e no quadril, e ele gritava “mataram minha mãe e meu pai”. Depois, um grupo de palestinos, “usando kuffyas”, mostrou o que até então se tratava apenas de rumores de um massacre.

A cena real de uma matança: corpos e corpos empilhados por estreitas vielas, e multidões aos prantos, buscando por sobreviventes ente os escombros. Tantos mortos, inocentes, esquecidos pela Síria e Jordânia, abandonados, no meio do jogo político sujo de Israel com os Estados Unidos. Apoiados por Washington, os soldados israelenses cometeram as mais diversas atrocidades. O massacre acabou com diversos vilarejos libaneses e muitos acampamentos de refugiados palestinos. Um soldado israelense, que atuou no massacre, Ari Folman, em seu documentário relembra o genocídio no Líbano, as execuções sumárias e a noite em Beirute com o céu iluminado por bombas de fósforo branco e outras de fragmentação. Quando amanheceu, viu pelas ruas mães e esposas de palestinos mortos, que choravam sobre os escombros e ruas encharcadas por sangue. O então primeiro ministro de Israel, Menachem Begin, já possuía um extenso currículo de matanças executadas contra palestinos. Ele era o líder sionista da Stern Gang, grupo terrorista responsável pela chacina em Deir Yasin.

Reflexos do massacre no Brasil

A representação da OLP em território brasileiro instalou-se no ano de 1979 e, em 1982, com o massacre dos palestinos no Líbano, realizou, com diversas organizações estudantis, sindicatos e partidos políticos, grandes passeatas em protesto ao genocídio dos palestinos em São Paulo. Mohamed Al Kadri descreve que as manifestações contaram com dez mil pessoas pedindo o fim dos massacres e a Palestina Livre.
Elie Hobeika, um dos responsáveis junto com Ariel Sharon pelos massacres de Sabra e Chatila, em 1985 assumiu o posto de chefe da milícia cristã, e pouco tempo depois alinhou o grupo aos interesses da Síria. Em janeiro de 2002, Hobeika morreu em um atentado a bomba, e sua morte apontou responsáveis como a Síria e, principalmente, Israel. Isso pois pretendia depor em Bruxelas em um processo de vítimas do massacre. Ele seria uma importante testemunha com relatos que prejudicariam o governo israelense.

No mesmo ano, meses depois, o empresário libanês Mikhael Youssef Nassar e sua esposa foram assassinados em um posto de gasolina da avenida Juscelino Kubtischek, no Itaim Bibi, em São Paulo. Foram mortos com tiros de uma pistola com silenciador e munição brasileira. O libanês era conselheiro de Hobeika e, depois dele, seria a segunda testemunha mais perigosa a depor contra os organizadores e executores do massacre de Sabra e Chatila. Além disso, era filho do comandante do famigerado Exército do Sul do Líbano, força aliada de Israel durante a guerra civil. Sobre ele ainda recai a suspeita de tráfico de armas e negócios ilícitos com áreas em vias de desapropriação para rodoanel. O motivo de seu assassinato nunca foi esclarecido pelas autoridades brasileiras mas há grandes possibilidades que seus executores sejam os mesmos de Elie Hobeika. Tal fato reforçou e, de certa maneira, confirmou a culpa de Israel pela morte de milhares de civis palestinos e libaneses.

O massacre 30 anos depois

Apesar de tal evento ser configurado como uma violação grave diante de um Tribunal Penal Internacional, nenhuma investigação ou condenação foram diretamente feitas contra o governo do Líbano. E mesmo com a acusação formal por meio de inquérito contra Ariel Sharon, o ministro da defesa não foi preso nem deixou o governo, somando este fato trágico da história da Palestina ocupada a tantos outros ignorados por quaisquer organizações ou nações da comunidade internacional.

O genocídio contra o povo palestino e as violações dos direitos humanos e das leis internacionais continuam fazendo parte da política assassina de Israel. Segundo a ANURP – Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos, mais de 500 mil palestinos buscaram refúgio no Líbano e não são considerados pelo governo libanês como moradores permanentes. Vivem isolados em guetos, como cidadãos de segunda classe. Somente em 2010, por exemplo, tiveram o direito ao emprego formal e, ainda assim, sem poder ocupar qualquer cargo.

 
Um analista sênior da ONG humanitária Human Rights Watch, Nadim Houry declarou que “os palestinos que vivem no Líbano têm as piores condições de vida de todo o Oriente Médio”, sem direitos civis e acesso a serviços públicos como saúde e educação. Fica claro que, além de genocídios planejados e executados por Israel, Estados Unidos e aliados, os palestinos sofrem todos os dias com o apartheid promovido dentro da Palestina ocupada e nos campos de refúgio espalhados pelo mundo. Sabra e Chatila é perpetuada e velada, então, sob ações de exclusão étnica, omissão e abandono dos palestinos.

Texto publicado originalmente no Boletim Al Thawra

Fonte:  http://www.litci.org/

"Escola" de "socialismo" na Espanha

Povoado espanhol de 2 mil habitantes está no mapa-mundi da esquerda

Parceira de Cuba e Venezuela, Marinaleda atrai jornalistas e curiosos de todos os cantos do planeta que desejam conhecer o sistema de participação baseado em assembleias, a divisão do trabalho na fazenda ocupada de El Humoso a distribuição de casas populares que evita a especulação imobiliária. Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira. A reportagem é de Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, direto de Marinaleda, Espanha.

Marinaleda - No bar do Sindicato de Obreros del Campo (SOC), em Marinaleda, nenhum frequentador respeita a proibição de fumar em locais fechados. Este município de 2 mil habitantes no sul da Espanha tem suas regras próprias e muitas divergem das oficiais editadas pelo Parlamento Nacional e pelo Rei Juan Carlos. Sua majestade, por exemplo, não ocupa a foto ao centro do gabinete do prefeito, Juan Manuel Sánchez Gordillo.

Emoldurado na parede aparece Che Guevara, enquanto detrás de sua mesa, a bandeira da República espanhola acompanha os estandartes da cidade e da Andaluzia, comunidade autônoma a que pertence. “Nosso escudo não tem coroa pela simples razão de que somos republicanos e portanto ninguém pintaria aqui um símbolo monárquico”, justifica o texto na página oficial de Marinaleda.

Se dois forasteiros entram no bar do SOC, ninguém pergunta o que eles vieram fazer ali, como se poderia imaginar que pudesse acontecer em uma minúscula cidade cortada pela estrada A-388 e que não possui nenhum castelo, palácio ou jardim famoso que atraia turistas. “De que país são vocês? Jornalistas, não é?”, dispara o produtor rural Pepele Cordejo, evidenciando a atração que o povoado provoca em profissionais da imprensa e outros curiosos.

De fato, a visita da equipe de Carta Maior a Marinaleda coincidiu com a de um repórter francês da revista L'Humanité Dimanche em um final de semana de setembro. No mês anterior, o município e seu prefeito apareceram em matérias da revista norte-americana Time e do diário inglês Financial Times. Outro periódico de Londres, The Guardian, elegeu Sánchez Gordillo “um dos cinco exemplos de desobediência civil” dos últimos tempos, colocando-o ao lado do líder independentista indiano Mahatma Gandhi.

É certo que ambos compartilharam do mesmo método, a greve de fome, para fazer valer suas reivindicações. Em Marinaleda a estratégia foi aplicada pela primeira vez em 1980, nos primeiros anos de democracia depois da longa ditadura do general Francisco Franco. O município espanhol, porém, recorreu ainda a táticas menos passivas para conseguir a desapropriação de uma fazenda que hoje é administrada por cooperativas de moradores da localidade.

A conquista de El Humoso
Basta citar o assunto da luta pela terra perto do balcão do bar do SOC para atrair a vários frequentadores, todos participantes de alguma atividade relacionada com a desapropriação de El Humoso. Alguns eram ainda crianças quando os pais se rebelaram contra os latifundiários que não produziam em suas propriedades.

Instigada pelo já prefeito Sánchez Gordillo, que desde 1979 não perde uma eleição em Marinaleda, a população iniciou um movimento de ocupação de terras massivo que durou sete anos. Primeiro tomaram um pântano na cidade vizinha de Cordobilla para exigir que o Estado levasse água até a propriedade de El Humoso, que então pertencia ao Duque do Infantado e era improdutiva.

Logo veio a pressão para desapropriar a fazenda. A Junta da Andaluzia comprou uma parte expressiva da área, 1.200 hectares, que passaram a ser geridos pelos trabalhadores.

Hoje, 21 anos depois da conquista das terras, essa porção de chão é o que garante que Marinaleda sobreviva à crise econômica que assola a Espanha, mantendo uma taxa de desemprego bastante inferior à nacional. O trabalho, sazonal, é repartido de maneira que todos os interessados contribuam com o mesmo número de horas na lide do campo, recebendo um salário também idêntico.

Talvez traumatizados com a repressão das forças de segurança do governo durante o período de ocupações de terra, os habitantes de Marinaleda decidiram abrir mão desse serviço na cidade. Não há um só policial nas ruas.

Administração socialista
O bar do SOC e o próprio sindicato ocupam um sobrado branco com janelas e portas pintadas de verde que abriga ainda o auditório do pleno da assembleia de Marinaleda, um órgão consultivo no qual todos os moradores devem tomar assento quando é convocado.

Nessas reuniões se reparte o trabalho na fazenda de El Humoso e na Humar Agroindústria, também de propriedade das cooperativas. Entre outras coisas é onde se decide quem poderá ocupar cada uma das casas populares construídas coletivamente entre os habitantes sobre terrenos doados pela prefeitura, para evitar a especulação imobiliária e permitir que todos tenham direito à moradia digna.

É também na assembleia que se faz a última etapa da discussão do orçamento participativo - em vigor desde 1979 em Marinaleda - e onde se decide, por exemplo, eventuais subidas de impostos ou modificações na jornada laboral. “Qualquer tema ou problema relativo à cidade levamos à assembleia, em todos os assuntos. Pensamos que a melhor maneira de decidir é coletivamente”, justifica o prefeito.

Oposição inexpressiva
No bar do SOC todos são de esquerda, inclusive aqueles que possuem propriedade privada, como Pepele. Ele, entretanto, não se atreve a participar das assembleias porque diz que seria mal visto pelos conterrâneos.

Juan Manuel Sánchez Gordillo conduz pessoalmente cada uma das discussões públicas, o que faz com que receba críticas de uns poucos moradores pelo excesso de personalismo que confere à cena política local.


Os integrantes da oposição supostamente se reúnem em outro estabelecimento para tomar suas cervejas e aperitivos enquanto conspiram contra a situação. O local, entretanto, esteve fechado durante os três dias em que estivemos na cidade. Pelas ruas poucos se atrevem a desafiar o sistema implementado pelo prefeito; se o fazem, pedem sigilo sobre sua identidade.

Curioso é que até a oposição em Marinaleda é de esquerda. Entre os 11 vereadores há dois contrários ao governo de Gordillo. São do Partido Socialista (PSOE), embora opinem que o sistema de assembleísmo é desnecessário e defendam que as pessoas devem ter “liberdade para não se unir às marchas e protestos”.

Do conservador Partido Popular (PP), sigla do presidente do governo espanhol Mariano Rajoy, não há nem sinal. Assim como os conservadores, jovens e mulheres também são uma espécie rara neste estabelecimento da cidade.

Arte subversiva
O ambiente do bar do SOC é igual à maioria dos botecos espanhóis: meia luz, televisão num volume bastante elevado, senhores jogando dominó e tomando “chupitos”, “cañas” e cafés. Ao fundo, entretanto, chama a atenção do visitante uma exposição de fotografias intitulada “Espólio e massacre da Palestina”.

A luta dos palestinos por um território próprio é assunto recorrente na cidade: foi tema da festa anual do povoado em 2008 e também se destaca na fachada de alguns prédios públicos de Marinaleda. Os murais formam um conjunto de pinturas políticas de apoio ao comunismo, realizadas por delegações internacionais que visitaram o município. É uma versão às avessas do East Side Gallery do muro de Berlim.

Ali estão desenhos assinados por espanhóis de diferentes cidades, europeus de países em crise – como a Grécia – e, é claro, de Cuba e Venezuela, cuja relação com Marinaleda é tão estreita que a televisão pública do município retransmite a programação de TeleSur e Cubavisión quando não há grade própria.

Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira.

Leia também:
Município socialista na Espanha resiste à crise

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Cidades privadas em Honduras: e se essa moda pega?

 
Na semana passada, o governo de Honduras assinou um acordo com uma empresa dos EUA para iniciar a construção das chamadas Regiões Especiais de Desenvolvimento. Na prática, o governo está entregando estas áreas para empresas transnacionais estrangeiras que nelas deverão construir “cidades modelo”, ou “charter cities”.
Trata-se de áreas “recortadas” do espaço institucional e político do país, convertidas em uma espécie de território autônomo — com economia, leis e governo próprios — totalmente implementado e gerido por corporações privadas. Idealizado por um pesquisador norte-americano, este modelo de cidade foi recusado por muitos países, inclusive pelo Brasil — Ufa! — antes de ser aceito em Honduras, através de uma mudança da Constituição aprovada em janeiro deste ano.
Organizações da sociedade civil, incluindo grupos indígenas cujos territórios podem estar inseridos nas zonas “liberadas”, vêm criticando o projeto, que consideram catastrófico, e já acionaram a Suprema Corte de Honduras, alegando inconstitucionalidade.
Versão extrema de um liberalismo anti-Estado e pró-mercado, o fato é que este modelo, na verdade, exacerba uma lógica privatista de organização da cidade, já presente em várias partes do Brasil e do mundo, como é o caso dos condomínios fechados, das leis de exceção vigentes sobre áreas onde se realizam megaeventos esportivos, dos modelos de concessões urbanísticas, entre outros exemplos possíveis.
A ilusão de uma sociedade sem Estado, teoricamente livre da burocracia, da corrupção e do abuso de poder, é na verdade a ditadura do consumo e do poder absoluto do lucro sobre a vida dos cidadãos. Imagina se essa moda pega…
Texto originalmente publicado no Yahoo!Blogs.
Fonte: http://raquelrolnik.wordpress.com/

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Trabalho é mais acessível para mulheres, mas em piores condições


Seminário internacional sobre economia feminista discutiu a situação do trabalho feminino profissional e doméstico 

Por Fernanda Sucupira
 
Nas últimas décadas, houve aumento significativo do emprego feminino remunerado praticamente no mundo todo, com pouquíssimas exceções. No entanto, as mulheres continuam recebendo menores salários que os homens, estão em empregos mais precários, encontram-se em maior número entre as pessoas desempregadas, trabalham mais em tempo parcial e continuam sendo as principais responsáveis pelo trabalho não-remunerado doméstico e familiar.
A atual configuração dos trabalhos das mulheres foi um dos temas discutidos no seminário internacional "Feminismo, economia e política: desafios e propostas para a igualdade e autonomia das mulheres", organizado pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), de 28 a 30 de agosto, em São Paulo.
Polarização, precariedade e trabalho doméstico
Três aspectos caracterizam o trabalho assalariado das mulheres nos últimos vinte anos, segundo Helena Hirata, pesquisadora brasileira do Centro Nacional de Pesquisa Científica da Universidade de Paris VIII.
O primeiro deles é uma bipolarização do emprego feminino: de um lado, há uma minoria de mulheres com nível universitário, melhores salários e em ocupações de prestígio social, enquanto, de outro, existe uma imensa maioria de mulheres com trabalhos mal pagos, desvalorizados e sem reconhecimento social. Estes são empregos muitas vezes em tempo parcial ou de caráter temporário, quase sempre sem perspectiva de carreira.
A segunda característica é justamente a precarização do trabalho que, desde meados dos anos 1990, atinge mais as mulheres do que os homens. "Até que ponto a criação de um emprego ruim é uma coisa boa?", questiona Hirata. Segundo ela, há um paradoxo: mais mulheres estão no mercado de trabalho, mas em empregos mais vulneráveis a riscos e mais mal pagos que os oferecidos aos homens.
"Não existe nenhum país no mundo em que os salários femininos sejam maiores que os masculinos. Em todas as sociedades, os homens ganham mais que as mulheres, porque o trabalho masculino é considerado de maior valor", explica a pesquisadora. A valorização do trabalho masculino continua maior a despeito do fato de que, em todos os países industrializados, as mulheres já são mais escolarizadas do que os homens.
A terceira característica do emprego feminino é o desenvolvimento do trabalho de cuidado no mundo, sobretudo com a externalização do trabalho doméstico. Para serem autônomas, mulheres com trabalhos em tempo integral, nível superior e responsabilidades profissionais precisam de outras pessoas para fazer uma série de tarefas domésticas - e o trabalho doméstico é um dos maiores guetos femininos. Em países como o Brasil, a delegação do trabalho doméstico gera cifras enormes: o Censo de 2010 identifica que há cerca de sete milhões de trabalhadoras domésticas no país. É nelas que as profissionais prestigiadas se apoiam para se dedicar às suas próprias carreiras.
Uso desigual do tempo de trabalho
A tendência de aumento do trabalho profissional feminino não foi acompanhada por mudanças equivalentes na divisão sexual do trabalho em âmbito doméstico. As mulheres ainda dedicam muito mais tempo do que os homens a esses afazeres e são as principais responsáveis pela reprodução social da vida humana.
Em todo o mundo, pesquisas sobre o uso do tempo na vida cotidiana mostram tal desigualdade. De acordo com Antonella Picchio, pesquisadora da Universidade de Módena, reunindo os resultados de 14 países industrializados, observa-se que as mulheres gastam duas vezes mais tempo com trabalho doméstico ou familiar do que com trabalho remunerado. O quadro se inverte no caso dos homens, que usam 2/3 de seu tempo para trabalho remunerado e 1/3 para atividades não remuneradas.
"As políticas e incentivos para mudar essa configuração não têm muito sucesso porque essa é uma questão estrutural", analisa Picchio. "O problema em relação ao trabalho não remunerado é que ele não se dirige apenas às crianças, às pessoas doentes e aos idosos, mas também aos homens adultos, que precisam de muito cuidado. O mercado de trabalho não apenas exige que os homens não se ocupem das crianças e dos idosos, como também espera que não se ocupem de si mesmos, não reconheçam sua própria vulnerabilidade."
Ainda segundo Picchio, mulheres com filhos realizam menos trabalho não remunerado se estão sozinhas do que se estão vivendo com seus companheiros. Quando se forma um casal, em geral a mulher acaba fazendo o trabalho doméstico dos dois. "As mulheres precisam conectar o trabalho pago à vida. Isso é colocado como uma imperfeição das mulheres, mas o problema é do mercado que vê os indivíduos sem corpos, sem pessoas para sustentar", afirma a pesquisadora italiana.
No Brasil, um levantamento do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), da Secretaria de Políticas para as Mulheres e do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), feito com dados da PNAD de 2007 mostra que as mulheres participam do trabalho doméstico em 90% dos domicílios brasileiros, enquanto a participação dos homens fica restrita a 50% das casas.
A participação masculina nos afazeres domésticos não é desprezível, mas, ao se analisar a média de horas dedicadas a essas atividades entre 2001 e 2007, nota-se que ainda consiste em uma participação bastante marginal. A dedicação média feminina teve uma pequena queda, de 29 horas em 2001 para 25 horas semanais em 2007; a masculina se manteve estável, sempre próxima a 10 horas semanais de trabalho não remunerado.
"As desigualdades muito marcadas no uso do tempo entre homens e mulheres têm impacto sobre a capacidade das mulheres de aceder a recursos, de conseguir trabalho remunerado, a capacidade de ser educada, de ser saudável, de se movimentar pelo território, de ter tempo livre. As desigualdades no uso do tempo são a matriz de muitas outras desigualdades", afirma Picchio. Ela defende uma redistribuição igualitária, entre homens e mulheres, dos recursos, dos trabalhos e das responsabilidades de cuidar de si mesmos e dos outros.
Fonte: http://www.reporterbrasil.org.br

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Não acredite em combustão espontânea


incendio em favelas sp

Em uma área em que se encontram 114 favelas de São Paulo, houve 9 incêndios em menos de um ano, enquanto que em uma área em que se encontram 330 favelas não houve nenhum. Algo muito peculiar deve acontecer com a minoria das favelas, pois apresentam mais incêndios que a vasta maioria. Ao menos que o clima seja mais seco nessas regiões e que os habitantes dessas comunidades tenham um espírito mais incendiário que os das outras, a coincidência simplesmente não é aceitável. O artigo é de João F. Finazzi.

João F. Finazzi (*)
Segundo a física, propelente ou propulsante é um material que pode ser usado para mover um objeto aplicando uma força, podendo ou não envolver uma reação química, como a combustão.
De acordo com o Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, até o dia 3 de setembro de 2012, houve 32 incêndios em favelas do estado – cinco somente nas últimas semanas. O último, no dia 3, na Favela do Piolho (ou Sônia Ribeiro) resultou na destruição das casas de 285 famílias, somando um total de 1.140 pessoas desabrigadas por conta dos incêndios em favelas.
O evento não é novo: em quatro anos foram registradas 540 ocorrências. Entretanto, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada em abril deste ano para investigar os incêndios segue parada, desrespeitando todos os trabalhadores brasileiros que tiveram suas moradias engolidas pelo fogo.
Juntamente com o alto número de incêndios, segue-se a suspeita: foram coincidências?
O Município de São Paulo apresenta 1565 favelas ao longo de seu território, distribuídas, majoritariamente na região Sul, Leste e Norte. Os distritos que possuem o maior número de favelas são: Capão Redondo (5,94% ou 93), Jardim Angela (5,43% ou 85), Campo Limpo (5,05% ou 79), Grajaú (4,66% ou 73). O que significa que 21,08% de todas as favelas de São Paulo estão nessas áreas.
Somando as últimas 9 ocorrências de incêndios em favelas (São Miguel, Alba, Buraco Quente, Piolho, Paraisópolis, Vila Prudente, Humaitá, Areão e Presidente Wilson), chega-se ao fato de que elas aconteceram em regiões que concentram apenas 7,28% das favelas da cidade.
Em uma área em que se encontram 114 favelas de São Paulo, houve 9 incêndios em menos de um ano, enquanto que em uma área em que se encontram 330 favelas não houve nenhum. Algo muito peculiar deve acontecer com a minoria das favelas, pois apresentam mais incêndios que a vasta maioria. Ao menos que o clima seja mais seco nessas regiões e que os habitantes dessas comunidades tenham um espírito mais incendiário que os das outras, a coincidência simplesmente não é aceitável.
Àqueles que ainda se apegam às inconsistências do destino, vamos a mais alguns fatos.
A Favela São Miguel, que leva o nome do bairro, divide sua região com apenas outras 5 favelas, representando todas apenas 0,38% das favelas de São Paulo. Desse modo, a possível existência de um incêndio por ali, em comparação com todas as outras favelas da cidade é extremamente baixa. Porém, ao pensar somente de modo abstrato, estatístico, nos esquecemos do fator principal: a realidade. O bairro de São Miguel é vizinho do bairro Ermelino Matarazzo, o qual, de acordo com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), teve a maior valorização imobiliária na cidade de São Paulo entre 2009 e novembro de 2011, 213,9%. Lá, o preço do metro quadrado triplicou – mas não aumentou tanto quanto a possibilidade real de um incêndio em favelas por ali.
As favelas Alba e Buraco Negro também estão na rota do mercado imobiliário. Dividindo o bairro do Jabaquara com o restante dos imóveis, a favela inviabiliza um maior investimento do mercado na região, que se valorizou em 128,40%. Mas nada como um incêndio para melhorar as oportunidades dos investidores.
Todas as 9 favelas citadas estão em regiões de valorização imobiliária: Piolho (Campo Belo, 113%), Comunidade Vila Prudente (ao lado do Sacomã, 149%) e Presidente Wilson (a única favela do Cambuci, 117%). Sem contar com Humaitá e Areião (situadas na Marginal Pinheiros) e a já conhecida Paraisópolis.
Soma-se a tudo isso, o fato de que as favelas em que não houve incêndios (que são a vasta maioria), estão situadas em regiões de desvalorização, como o Grajaú (-25,7%) e Cidade Dutra (-9%). Cai, juntamente com o preço dos terrenos, a chance de um incêndio “acidental”.
Pensar em coincidência em uma situação dessa é querer fechar os olhos para o mundo. Resta aos moradores das comunidades resistirem contra as forças do mercado imobiliário, pois quem brinca com fogo acaba por se queimar. Enquanto isso, como disse Leonardo Sakamoto, “…favelas que viram cinzas são um incenso queimando em nome do progresso e do futuro.”
(*) Artigo publicado originalmente no blog do PET RI PUC-SP - Programa de Educação Tutorial do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Herdeiros do Pampa pobre¹?


Herdeiros do Pampa pobre¹?

O Pampa, comparado aos outros cinco Biomas Brasileiros – Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal, Cerrado e Caatinga -, tem por característica geral e peculiar, ser predominantemente composto por campos e, historicamente, lugar da atividade pecuária. Possui aproximadamente 3.000 espécies de plantas, 500 espécies de aves e 100 espécies de mamíferos terrestres [2]. Embora só represente 2,07% da superfície do país e esteja limitado somente ao Rio Grande do Sul, é um bom exemplo da simbiose de uma atividade econômica, preservação e conservação ambientais.
Além disso, o Pampa é um Bioma transfronteiriço que também ocorre no Uruguai e Argentina e, está intrinsecamente ligado à construção das identidades nacionais destes países e culturais do Rio Grande do Sul, nas figuras, hoje idealizadas, dos gauchos, do gaúcho e de seu modo de vida. A relação meio ambiente/paisagem, a atividade econômica/pecuária e a cultura/identidade regional é bastante clara.
Neste Bioma, que foi o segundo Bioma mais destruído até 2009, a supressão da vegetação nativa (“taxa de desmatamento”) [3] já atingiu 63,97% da sua área (CSR/IBAMA, 2010). Esta supressão se dá principalmente pela conversão dos campos nas monoculturas de soja, arroz e eucaliptos, além da substituição das gramíneas nativas por espécies exóticas, muitas vezes, invasoras, como, por exemplo, é o caso do Capim Annoni (Eragrostis plana). Também contribuem e agravam a degradação do Bioma o manejo e o emprego de técnicas inadequadas.
Por falar em áreas degradadas e pecuária, recentemente no texto “Em vez de desmatar mais, usar melhor o que já foi desmatado” [4], o professor Ladislau Dowbor, utilizando informações do Censo Agropecuário do IBGE (2006), apresenta uma análise onde destaca a pecuária como a grande responsável pela subutilização de áreas já desmatadas/degradadas, o incremento da atividade na Região Amazônica e, o seu deslocamento das Regiões Sul / Sudeste para o Centro-Oeste / Norte, ou seja, para os Biomas Cerrado e Amazônico.
E qual a relação entre o Pampa e o artigo do Professor Dowbor? Ora, a associação linear entre pecuária e devastação ambiental, importante como generalização, não pode ser associada à realidade do Pampa. Como em toda regra há exceção. Neste Bioma, que conta com mais de 450 espécies de gramíneas nativas, a atividade pecuária, conduzida dentro de certos princípios e técnicas, é um ótimo exemplo da relação positiva entre preservação/conservação ambiental, atividade econômica e cultura.
A análise do professor talvez busque demonstrar, mais uma vez, o despropósito e a irresponsabilidade daqueles que aprovaram o Projeto de Lei nº 1.876 de 1999, o “Código Florestal do B”, vetado parcialmente pela Presidente da República, cujos vetos agora estão sob a análise do congresso nacional [5]. Todos sabemos que as razões que levaram à redação e à aprovação deste código do B não tem nenhuma base científica e qualquer compromisso com o País, sendo inúmeras as manifestações de cientistas da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC) quanto a isso.
Mas afinal, “… que Pampa é essa que eu recebo agora … ”? [6] Sem dúvida a explicação é complexa e exige uma análise longa e multidisciplinar que está aquém do objetivo deste texto. O que está claro é nossa incapacidade de entender e superar adequadamente a situação. Buscando contribuir com esta compreensão, é que destacamos algo que, a primeira vista, é bastante contraditório. Por um lado, as notícias e análises sobre a Região do Pampa, oscilam, entre a descrição de cenários de desolação e depressão econômica vinculadas a propostas salvadoras, quase sempre superficiais, imediatistas e, por outro, nas elegias e epopeias cantadas nos inúmeros festivais e centros tradicionalistas, com referência a um passado glorioso, já mitológico.
De longa data, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desenvolvem pesquisas, com resultados positivos confirmados, que indicam que apenas com o manejo adequado dos campos é possível triplicar a produtividade pecuária na região, praticamente a um custo zero, isto é, sem a necessidade de grandes investimentos e financiamentos e, lógico, endividamento. Também é de amplo conhecimento que a carne bovina tornou-se uma commoditie com crescente demanda e, portanto, valorização. Além disso, temos o potencial de agregação de valor pela adequação da produção ao respeito ao meio ambiente e a práticas ecologicamente corretas.
Se todas estas condições são favoráveis, disponíveis e baratas, por quê não produzimos mais carne? Por quê o Pampa tem assistido ao abandono sistemático da atividade pecuária em troca de monoculturas duvidosas com todos os seus problemas – reconcentração fundiária em empresas transnacionais, usos abusivo de agrotóxicos, destruição das matas ciliares, assoreamento dos rios e por aí afora?
É claro que podemos intuir algumas das razões que, certamente, são parte da explicação: a Região, outrora celeiro de líderes gaúchos e nacionais, hoje, é um deserto de lideranças; carência de políticas para pecuária, em especial, para a pecuária familiar; despreparo dos produtores; falta de valor agregado na cadeia produtiva, comercializando, quase sempre, os produtos in natura; baixa autoestima da população, em contradição à glorificação do gaúcho, cantada pelos tradicionalistas, cuja identidade é estreitamente vinculada ao Pampa e à pecuária. Ninguém faz versos e canções para sua colheitadeira mecanizada ou para seu aplicador de agrotóxicos!
É num esforço de superar esta realidade que iniciativas como os Projetos Incentivos para la Conservación de los Pastizales Naturales en el Cono Sur (ARG, BR, UY), Producción Responsable (UY) e o RS Biodiversidade (BR), só para citar alguns, buscam chamar a atenção de produtores, da população em geral e de nossas lideranças.
As oportunidades estão postas, carentes de decisão política. Nossas míopes lideranças seguem agarrando-se em modelos insustentáveis e ultrapassados. Diferente do que herdamos, um Pampa ainda rico em biodiversidade e com grande potencial a ser explorado, caminhamos, a passos largos, para deixar às futuras gerações “… heranças feitas de promessas rotas, campos desertos que não geram pão, onde a ganância anda de rédea soltas …” tal qual cantavam os Engenheiros do Hawaii nos anos 90, na música “Herdeiro da Pampa pobre ”, de autoria do Gaúcho da Fronteira.
Fernando Falcão, Arquiteto
[1] Referência ao título da música de autoria de Vaine Darte (Gaúcho da Fronteira) “Herdeiro da Pampa pobre”, gravada pelos Engenheiros do Havaí.
[2] http://www.mma.gov.br/biomas/pampa
[3] Expressão, no mínimo inadequada, utilizada oficialmente também para se referir à supressão de vegetação nativa em biomas não florestais.
[4] http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20168
[5] Propositalmente em minúsculas.
[6] Trecho da música Herdeiro da Pampa pobre, de Vaine Darte (Gaúcho da Fronteira).
No RS Urgente

Incêndios em favelas e a especulação inflamável


  
Texto de Guilherme Simões* sobre a onda dos ataques contra os pobres que atrapalham a burguesia nas capitais.

Nos últimos 20 dias, cinco grandes incêndios atingiram favelas em São Paulo. Esse tipo de incidente cresce a cada ano em proporções assustadoras. Entre 2008 e 2011 foram mais de 500 incêndios em favelas. Em 2012, segundo o corpo de bombeiros, já são 32. A destruição é enorme, quando não é fatal: móveis, eletrodomésticos, barracos inteiros. Pessoas feridas e até mortas. Por que isso ocorre com tamanha frequência? Quais são os reais motivos para tantos “acidentes” e tragédias? Que setores da sociedade se envolvem com essa situação? Qual é a condição das famílias que perdem tudo a cada incêndio?

No dia 17 de agosto, a favela do Areão, próxima a Marginal Pinheiros na Zona Oeste, pegou fogo e cerca de 300 pessoas ficaram desabrigadas. Moradores afirmam que o corpo de bombeiros não permitiu que eles ajudassem a conter as chamas. O incêndio não destruiu a favela inteira, o que permitiu que os moradores que haviam perdido tudo pudessem começar a reerguer suas moradias. No dia seguinte, a favela Alba, região do Jabaquara, próxima ao aeroporto de Congonhas também foi incendiada, desabrigando quase 200 pessoas. A prefeitura não ofereceu sequer alojamento para as famílias que perderam tudo. Já no dia 23 de agosto, uma favela localizada na Vila Prudente, próxima a uma estação de trem na Zona leste pegou fogo pela segunda vez em 2 anos. Dessa vez, mais de 600 pessoas ficaram sem teto. Os próprios moradores se organizaram e ficaram abrigados numa escola de samba vizinha à comunidade, já que a prefeitura não disponibilizou nenhum abrigo. Além disso, a PM isolou o local e não permitiu que os moradores reconstruíssem suas casas após o incêndio. Poucos dias depois, 28 de agosto foi a vez da favela da Paixão, próxima a Avenida Jacu Pêssego em São Miguel Paulista na Zona Leste ser incendiada, desabrigando cerca de 300 pessoas. Mais uma vez, a prefeitura não ofereceu nenhuma assistência às famílias que, indignadas, travaram por alguns minutos a Avenida Jacu-Pessego que dá acesso à rodovia Ayrton Senna e foram tratados com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e tiros de borracha pela PM. O último e possivelmente mais trágico incêndio do ano ocorreu no último dia 3 de setembro na favela Morro do Piolho na região do Campo Belo, próximo ao aeroporto de Congonhas. Mais de 1000 pessoas perderam suas casas, quatro pessoas ficaram feridas pelo fogo e, pra variar, a PM permanece no local impedindo os moradores de voltarem. O detalhe é que a área estava nos planos de “desapropriações” planejado para ocorrer em todo o eixo da Avenida Jornalista Roberto Marinho.

Em geral as razões atribuídas para os incêndios são “acidentes” com rede elétrica clandestina ou com botijões de gás que seriam mal manuseados pelos moradores das favelas, além do que o período mais seco do ano ajudaria propagar as chamas. O que pouco se fala é que, em geral, essas tragédias ocorrem em regiões extremamente valorizadas do ponto de vista do setor imobiliário da cidade. Marginal Pinheiros, Jacu Pêssego, Rodovia Ayrton Senna e região do aeroporto de Congonhas são algumas das fatias urbanas que mais interessam à especulação imobiliária. Essas regiões abrigam condomínios, hotéis, shoppings, estações de trem e metrô, sendo as áreas das favelas objetos de desejos dos empreendimentos vampirescos dos empresários da construção civil. Essas pessoas tem interesse direto e explícito em acabar com as favelas nesses lugares.

Como nem sempre é possível despejar as famílias com a truculência militar ou com indenizações ridículas, os incêndios prestam um grande serviço à intenção de expulsar os mais pobres das áreas mais valorizadas da cidade. Não é só o caso desses últimos incêndios, mas da maioria deles. Favela do Moinho (2011), Real Parque e Jaguaré (2010) comprovam através de fatos que os incêndios em favelas não são um mero acaso.

Casos tão gritantes provocaram a criação de uma CPI dos incêndios em favelas na câmara municipal de São Paulo. Pra inglês ver. Em cinco meses de “funcionamento”, a CPI se reuniu apenas 3 vezes. A última delas numa reunião que durou 20 minutos! Detalhes importantes: 1- Nessas três reuniões, o único encaminhamento foi a nomeação de um relator (Aníbal de Freitas, do PSDB) e uma vice-presidente (Edir Sales, do PSD); 2- a CPI tem prazo até dia 9 de setembro pra apresentar um relatório da investigação que ainda não começou; 3- a maioria dos vereadores são da base de apoio do governo municipal de Gilberto Kassab, o mesmo que negou qualquer assistência aos moradores atingidos pelos incêndios. É evidente que a CPI vai acabar em fumaça, assim como os barracos...

Kassab também é o prefeito-amigo da especulação imobiliária. Entre 2009 e 2012, grandes construtoras receberam em contratos com a prefeitura mais de R$ 2 bilhões. Para se ter uma idéia, as construtoras Camargo Correa, EIT, OAS e Engeform (que constam entre as maiores do Brasil) doaram juntas para a campanha de Kassab em 2008 cerca de R$ 6 milhões e em troca somaram em contratos junto à prefeitura nos 4 anos seguintes, nada menos que R$ 639 milhões! Mais de 100 vezes mais o valor investido! Vale ressaltar que a prefeitura destinou em 2011 o valor absurdo de R$ 1mil reais para a compra de áreas para a construção de habitação popular.

Os trabalhadores mais pobres, especialmente moradores de regiões muito valorizadas são um obstáculo concreto e inconveniente para a especulação imobiliária e para os governos, patrocinados por ela. Vivem sob a maior precariedade possível e em situações como essas, perdem absolutamente tudo e ainda são criminalizados. Não se pode esperar nenhuma solução por parte da prefeitura ou de outras esferas do governo, pois estamos diante da mais crua e cruel guerra entre interesses diferentes: os que colocam os lucros acima da vida contra os que sobrevivem teimosamente em busca de dignidade.

*Membro da coordenação nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e da Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos

terça-feira, 11 de setembro de 2012

MS: pistoleiros sitiam acampamento indígena e destroem barracos



Indígenas Guarani Kaiowá sofreram mais um ataque de pistoleiros em Paranhos, no Mato Grosso do Sul, divisa do Brasil com o Paraguai. Segundo lideranças que estão no local, na segunda-feira, 10, cerca de 30 homens armados sitiaram o acampamento, destruíram barracos e roubaram os pertences das famílias desabrigadas. 

A reportagem é de Ruy Sposati e publicado pelo sítio do Cimi, 10-09-2012.
   A Terra Indígena - chamada Tekoha, ou território sagrado, pelos guarani kaiowá - em questão já foi homologada pelo governo federal, apesar da desintrusão de não-indígenas da área ainda não ter sido realizada. Este é segundo ataque em menos de duas semanas no mesmo local, e o quarto desde a retomada, realizada no dia 16 de agosto.  Em um dos conflitos, um acidente provocado pelos pistoleiros levou um bebê de menos de um ano à morte. Outro guarani kaiowá permanece desaparecido.
   Pela manhã, ao menos 30 homens armados fizeram um cerco ao acampamento dos indígenas. "Desde a semana passada, os pistoleiros estão armando um acampamento com telhado de ethernite ao redor da gente", explica Dionísio Guarani. "Eles tem tudo calibre 12, 38, pistola, bala na cintura. Hoje de manhã, eles se aproximaram e atiraram pra cima", relatou.
   A situação se acirrou durante a tarde, quando a comunidade foi invadida por dezenas de homens armados. "Chegaram atirando pra cima. Vindo pra cima. Destruíram dois barracos e levaram tudo. Pra queimar em algum lugar. Nós gritamos muito". Duas famílias estão desabrigadas, mas, segundo Dionísio, novas moradias já estão sendo construídas para acolhê-las.

Denúncia

   Os indígenas já denunciaram a situação para o Ministério Público Federal (MPF) - que já havia pedido instauração de inquérito policial para apurar a morte e o desaparecimento - e a Funai. "Eles estão todos armados, e nós não. O cara da fazenda tá juntando gente [pistoleiro] aqui. Paraguaio, brasileiro. Estamos esperando alguma notícia [dos órgãos públicos]". Segundo Dionísio, Funai, Força Nacional e Polícia Federal ainda não estiveram no local hoje.
   "Os ataques sistemáticos dos pistoleiros revelam a audácia dos latifundiários e  demonstram o seu evidente menosprezo às normas legais e ao próprio Estado brasileiro. Naquela região, eles criam, julgam e executam as próprias leis", aponta o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto.  "Mais ainda, todo o conflito demonstra a inoperância do governo federal para reverter essas crises - e também uma aparente falta de vontade política em solucionar o problema".  Para o indigenista, há ali uma situação de trincheira, "uma guerra de um lado só, dos fazendeiros armados, com um poder público ausente", conclui.

Potrero guaçu

   A área em processo de demarcação, retomada pelos guarani em agosto, sofreu mais um ataque. Dois pistoleiros paraguaios à cavalo abordaram indígenas, disparando pistolas e ameaçando de morte quem atravessasse a porteira da fazenda.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Ocupação como gesto insubordinado



Uma abordagem da ocupação em relação à propriedade privada e aos movimentos sociais MST e MTST

Por Thais Rivitti






















“Ocupar, resistir e produzir”, eis uma famosa palavra de ordem do MST, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Os movimentos sociais fazem ocupações de terra e os jornais anunciam as ações como invasões. A celeuma é antiga. Entre ocupar e invadir há uma diferença sutil, porém decisiva. Ocupa-se algo que estava desocupado, não servia a nada nem a ninguém. Invade-se um lugar que estava em uso, expulsando à força seus antigos ocupantes. O emprego de um ou outro termo revela, sobretudo, a posição política daquele que fala.
O livro “Por que ocupamos? – Uma introdução à luta dos sem-teto” , escrito por Guilherme Boulos, um militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto,  e publicado em 2012 pela Scortecci Editora, busca explicar por que o MTST utiliza-se da ocupação de terra (improdutiva, que serve apenas à especulação imobiliária) para lutar pelo direito à moradia. É possível lutar por moradia de outra forma? Bem, por que não?  Marchas, protestos, abaixo-assinados que circulam pela internet, artigos para jornais, diálogo com as secretarias e o ministério de habitação. Todas essas estratégias são utilizadas pelo MTST. Por que, então, ocupar? Por que mobilizar inúmeras famílias, construir barracos de lona em terrenos hostis, expor-se a despejo nada amigáveis?
O livro de Boulos nos apresenta um motivo tão forte quanto óbvio: o déficit habitacional. Pode parecer tolo, mas,  se não houvesse demanda, não haveria luta. O fato é que os números impressionam. Pode-se dizer que um terço da população brasileira vive sem condições mínimas de moradia digna (luz elétrica, esgoto, água encanada e coleta de lixo). Entram nessa conta também as famílias que vivem em casas superpovoadas, ou seja, casas que abrigam mais de 3 pessoas por cômodo, normalmente pequenos. São números oficiais, ou seja, são os números da Fundação João Pinheiro, usados pelo Governo Federal para pensar em uma – até hoje bastante ineficiente –  política habitacional.
Se a primeira resposta à pergunta “por que ocupamos?” é  porque não há moradia digna para todos, embora esse seja um direito garantido pela constituição, há duas outras coisas que apenas a  experiência de compartilhar o mesmo espaço, nem que seja por um breve período de tempo, pode trazer. Uma delas é que as ocupações questionam a lógica geral da distribuição de terras que, segundo o argumento reproduzido por Boulos, foi iniciada com as capitanias hereditárias, se quisermos buscar sua origem histórica. De uma forma ou de outra, as ocupações colocam a incômoda pergunta sobre o que é justo, no que diz respeito a um dos pilares mais sagrados do nosso Direito, a propriedade privada. Ocupar é uma ação que, por si só, declara sua discordância em relação ao senso comum, que diz que qualquer um pode fazer o que bem quiser dentro da sua propriedade – até não fazer nada. Mas nada mesmo, nem pagar os impostos devidos (a imensa maioria dos terrenos ocupados pelos movimentos de luta pela moradia têm dívidas imensas com o governo).
As ocupações são um estorvo, conseguem incomodar. As ocupações, mesmo no caso do MTST, que têm como prática atuar na periferia da grande São Paulo, em cidades como Osasco, Embu, Taboão da Serra, Itapecerica, ABC Paulista e Guarulhos, são ações fortes o suficiente para provocar e, portanto, cavar um espaço de negociação com uma população que nunca é ouvida.
A reforma urbana, bandeira levantada pelo movimento dos sem teto, é uma espécie de análogo à reforma agrária, propõe uma revisão sobre as bases em que a ocupação urbana é feita e se propõe a pensar em como tornar as cidades um lugar mais acolhedor para a imensa maioria de pobres. Além de habitações, também se pensa nos espaços públicos, nos equipamentos como hospitais, escolas, centros de lazer, no sistema de transporte, no esgoto e na rede elétrica. Mas a luta mais imediata é por um teto. É o que é mais urgente e concreto.  É também o que agrega o povo todo em uma proposta comum. É o estopim necessário para que todos se identifiquem como iguais.
Nesse sentido, é interessante observar como as ocupações do MTST instauram uma outra forma de convivência, baseada em ideais mais comunitários, no interior dos acampamentos. As cirandas são locais em que as crianças moradoras das ocupações passam o dia. Os pais podem deixá-las em segurança, sabendo que serão cuidadas por pessoas da própria comunidade. As experiências dos saraus, em que cada um mostra algo que sabe fazer: peças de teatro, leituras de poesia e músicas no violão em torno da fogueira. As cozinhas são comunitárias, o alimento é recolhido por meio de doações e as cozinheiras que se propõem a desempenhar essa função o preparam em grandes quantidades. As decisões são tomadas em assembleia. Instala-se um mecanismo de representação, dentro do qual elegem-se coordenadores de blocos responsáveis por levar às assembleias as propostas do grupo.
São experiências. Não que tudo funcione assim, às mil maravilhas. Longe de afirmar que a vida nos acampamentos seja efetivamente diversa daquela que se leva em uma comunidade ou favela, estamos diante de promessas. Há muito a ser trabalhado. Mas o gesto de insubordinação inicial, de desrespeito mesmo à sacralização da propriedade privada, talvez coloque essas pessoas em condições de questionar, com a mesma radicalidade, os consensos em torno dos quais se articulam hoje a vida em sociedade. O modelo vigente, do trabalho alienado, é contraposto ao trabalho realizado dentro dos acampamentos, em benefício de todos: não apenas o trabalho na cozinha, mas também a segurança, a  construção de fossas, a negociação com os moradores vizinhos, entre outros. A posição da mulher, que muitas vezes é a chefe da família (com ou sem o marido ao lado), coloca em protagonismo a atuação delas no interior desses movimentos. A própria noção de educação tradicional é reavaliada, com decisões pontuais, mas não por isso menos importantes do ponto de vista simbólico, como homenagear João Cândido, marinheiro negro, líder da revolta das chibatas, dando seu nome a um dos maiores acampamentos já realizados, em Itapecerica da Serra.
Ainda é pouco, muito pouco, para fazer frente ao status quo. Basta ver o massacre aos sem teto que foi a desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos. A fragilidade e a instabilidade dos movimentos sociais é patente. E isso sem entrar no quanto eles estão sujeitos à cooptação política, a ceder em seus princípios em troca de poucos favores ou concessões. Despejo após despejo, é difícil renunciar a alguns benefícios proporcionados pelos governos locais. Essa questão, bastante relevante após dez anos do Partido dos Trabalhadores no poder, é aludida no livro de Boulos com pertinência e coragem. Mas, num horizonte político tão conformado, tão carente de atitudes realmente insubordinadas, os acampamentos são um feito e tanto. Esse gesto de  insubordinação, espécie de afronta a valores sedimentados socialmente, a capacidade de questionar estruturas que continuam operando, embora muitos as reconheçam como desfuncionais, está na base das ocupações por moradia.
Não seria também esse mesmo tipo de insubordinação, de gesto de ruptura, de não acomodação aquilo que está presente em alguns dos melhores trabalhos de arte? Eles também, a sua maneira, constroem esse campo crítico, expõem fraturas sociais, indicam pontos cegos, mostram possibilidades até então não abertas. Seria muito bom ver um encontro entre esses dois campos. Um movimento social contaminado pela noção radical de liberdade, que a arte normalmente é portadora, e uma arte que atue próxima ao real, abandonando o pequeno e restrito circuito institucional das artes.