segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

As Formas da Violência.


Todos sabemos o que é vio­lência. Mas, para não ficarmos im­pressionados apenas com as cenas explícitas de pancadaria e san­gue, é preciso que nos aprofundemos um pouco mais no conceito de violência. A atual velocidade da informação induz a uma certa superficialidade cô­moda em relação ao sistema po­lítico que nos domina. Portanto, não é bom nos apressarmos di­zendo que a violência, além das balas perdidas que matam os cariocas, ou da ação dos justiceiros que "limpam" os subúrbios paulistanos, também é a Polícia Militar armada de metralhadoras, invadindo com cães e bom­bas de gás os acampamentos de trabalhadores rurais ou áreas ocupadas nas periferias das cidades..
A cena já se banalizou na televisão: o camponês ou o favelado tenso, as veias do pescoço intumescidas, defende-se, com a enxada ou com pedaços de paus, da tropa que avança com cassetetes e atira para o ar, tentando o dispersar o grupo que protesta ou pretende ocupar uma área. Banal também é o repórter mostrar os cartuchos queimados de escopetas ou metralhadores, que foram disparados contra os camponeses, sem-terras ou sem-tetos. Não raro, a mãe — ou pai, marido, esposa etc. — aos pran­tos expõe o cadáver, o sangue, os feridos. E, fechando a reportagem, a indignação do bispo ou do padre, acusando as autoridades de se acumpliciarem com os latifundiários ou a elite econômica para expulsar o trabalhador da terra ou da área ocupada.
Essas cenas, freqüentemente mostradas em horário nobre na televisão brasileira, são a face menos grave da violência no campo. São as superfícies do problema, as imagens visíveis de uma realidade muito mais densa e grave.
A televisão "dramatiza" a violência, exibindo a brutalidade da repressão. As imagens de pancadaria e assassinato revelam os resul­tados da violência formal, com cenas tão fortes e emotivas que nos afastam da crítica das suas causas.
Fácil e difícil.
É necessário examinar o con­teúdo dessa violência. E isso tem sido uma tarefa bastante fácil, embora repudiada. Fácil, porque é evi­dente que a causa da violência dra­mática vista na televisão é a absurda concentração de renda no Brasil: a maior do mundo. Uma ínfima mi­noria detém a maior parte da renda e É dona da maioria das propriedades. É o processo histórico ain­da em andamento — que produziu o sistema latifundiário, em que ex­tensões de terras, às vezes maiores que muitos países da Europa, per­tencem a um único dono. Eis por que também é difícil trabalhar essa realidade: as elites sociais e políti­cas brasileiras são originárias e beneficiárias desse sistema de exploração e sentem-se desconfortáveis ao discutir seriamente a questão agrária.
Não é à toa que tais elites, que compõem as classes dominantes e dirigentes, sintam-se mal diante do problema: debater a reforma agrá­ria é assumir a responsabilidade de privilégios que precisam acabar, porque prejudicam o povo brasileiro. Grande parte, ainda, dessa elite repudia qualquer discussão sobre a reforma agrária, pois não quer per­der nenhum dos privilégios que usurpou historicamente. Para os ho­mens mais poderosos do Brasil — os latifundiários —, essa usurpação é considerada um direito e está garantida por lei.
Racionalmente, é impossível separar as coisas: os problemas agrários, agrícolas e trabalhistas no campo só se resolvem com uma nova política fundiária, isto é, com uma redistribuição de rendas que comece pela divisão de terras dos latifundiários entre os camponeses. É evidente que os latifundiários seriam prejudicados, já que per­deriam suas terras ociosas, que ser­vem de lastro para empréstimos e especulação junto aos bancos oficiais os quais quebram, entre outras causas, por atender a esses pa­rasitas estabelecidos tambem nas Câmaras, no Senado e em todos os desvãos do poder. Sem sua base ter­ritorial, os latifundiários perderiam tambem a capacidade de corromper e, principalmente, de explorar — ao limite de matar de fome crianças no ventre das mães —, para se enriquecer cada vez mais, enquanto a nação navega na sua histórica desgraça. Por isso é fácil e difícil.
É como a aids. Diagnosticar é fácil, curar ainda é impossível. Há aqueles que sequer acreditam na doença...
Nós somos a violência
Ao analisar as estatísticas, é fácil constatar a injustiça na distri­buição de terras, bem como verifi­car que o trabalhador rural é tratado como escravo. Difícil é discutir a re­alidade em nível que englobe toda a estrutura social do Brasil. Esse debate mexeria com os grandes inte­resses, exigiria a participação de to­dos no processo de mudança e pode­ria comprometer os privilégios que estão arraigados nas nossas elites e. tambem, nas classes mé­dias altas. Além do mais, nestes tempos neoliberais, a classe média ascendente não quer perder o carnaval consumista e sonha com um importado qualquer. Por isso é difí­cil mudar.
A questão rural deixa de ser um pro­blema para transformar se em um drama. Dramatiza-se a violência. As imagens de homens, mu­lheres e crianças espancados ou mortos emocionam. A emoção afas­ta-nos da crítica. Aliás, estamos con­dicionados a não criticar a sociedade em seu conteúdo: foi assim que nos educaram. Somos, portanto, pes­soas "cultas". Como nossos avós, que nada tinham em comum com os negros da senzala, também nós nada temos a ver com os rudes homens do campo. Como nossos avós, que, nada tendo a ver com os escravos, desejavam sua liberdade, porque tudo aquilo era desumano, nós pre­ferimos que os camponeses não se­jam mortos ou espancados, pois isso é muito cruel. E como nossos bons avós. Que fizeram a Lei Áurea, a qual deu aos negros o trabalho pesa­do sem dor de consciência aos bran­cos cultos, assim nós gostaríamos de uma lei que punisse os homens maus, que, armados de cassetetes e metralhadoras, espancam e matam os bons camponeses, que produzem os alimentos que comemos.
Assim, inconscientemente, alimentamos a violência. Na medida em que não avaliamos profundamente o conteúdo da violência, e nos deixamos envolver pela sua aparên­cia, permitimos que as autoridades nos iludam com medidas formais. A emoção leva-nos à solidariedade e à dor pelas vítimas e contentamo-nos com a punição dos malvados. O sistema beneficia-se dessa falta de consciência crítica e a sua estrutura econômica, que gera a violência, permanece intocada.
E preciso lembrar que existe uma violência formal, derivada de uma violência em conteúdo, que de­termina certos procedimentos so­ciais. Por exemplo, as pessoas que se indignam com a brutalidade da Polícia espancando e matando, e esperam que o Judiciário contenha os soldados, precisam ser lembradas de que a Força Policial só se move por determinação judicial.
O trabalho infantil
Há muitas modalidades de violência, desde a exploração do trabalho infantil e modelos “modernizados" de escravismo até o mais agressivo confito social. São for­mas que derivam de um conteúdo', a concentração de terras (o latifún­dio) com a conseqüente concentração de riquezas.
O trabalho infantil continua sendo comum no campo. Hoje, trabalham nele 1,28 milhão de cri­anças. Mesmo na região agrícola mais evoluída do Estado de São Paulo, exploram-se crianças no corte de cana, como em Ribeirão Preto (conforme constatou o Mi­nistério Público, em maio de 1995), a despeito de o Estatuto da Criança e do Adolescente proibir "trabalhos penosos" aos menores de 18 anos. A exploração de cri­anças em atividades perigosas pode acarretar de três meses a um ano de prisão. No entanto, como sempre, os usineiros nunca são in­criminados, já que nas suas terras trabalham menores contratados pêlos "gatos", empreiteiros de mão-de-obra que, entre outras coisas, livram os latifundiários das obrigações trabalhistas e lhes permitem usufruir do trabalho de adolescentes e mesmo de crianças de 5 anos.
As crianças empregadas na colheita de cana ganham por pro­dução e chegam a cortar 5 tonela­das por dia. Até o final da década de 80, 17% dos trabalhadores ru­rais no Estado de São Paulo eram menores de 15 anos. Só na região de Lins, em 1986, havia 150 mil menores trabalhando no campo. O corte de cana é um dos serviços mais duros: as folhas ferem o rosto e as mãos, por isso as crianças tra­balham com panos enrolados sobre o corpo. Às vezes, a exploração do trabalho infantil chega a extremos de violência, como no caso do me­nino Valmir Rodrigues de Souza, de 8 anos. Em outubro de 1991, ele foi assassinado a socos pelo seu pa­trão, o fazendeiro Toinho Chorenga, em Barreiras (BA), porque, ao conduzir um carro de bois, drixou-o encalhar.
Trabalho escravo
Essa prática vem aumentando no Brasil. Configura-se como trabalho escravo o camponês que é impedido de deixar a propriedade e obrigado a exercer, forçosamente, suas tarefas. Geralmente, o tra­balhador fica preso ao patrão ao contrair dívidas no armazém da fazenda, que cobra preços abusivos. Enquanto não saldar a dívida, fica impossibilitado de sair. Vigiado pêlos "seguranças", é caçado se tentar fugir e pode ser morto caso não volte pacificamente.
As convenções internacionais reconhecem esse trabalho escravo como um gênero do trabalho força­do. No Brasil, o número de trabalhadores escravos vem aumentando: de 1989 até 1993 cresceu 33,4 vezes. Essa prática, mais comum do que se pensa — e verificada até mesmo em regiões desenvolvidas do país, como no Estado de São Paulo —, não é um anacronismo; pelo contrário, está ligada ao "pro­gresso" e à mecanização do campo, em uma das mais extraordinárias contradições brasileiras.
Em 1993, foram registrados 19.940 casos de trabalhos forçados, tendo sido encontradas carvoarias que mantinham 8 mil camponeses coagidos. Empresas modernas, co­mo a Destilaria Debrasa, em Brasilândia (MS), mantiveram, em 1993, 1.306 pessoas em regime de trabalho forçado. As conhecidas como "61 Fazendas", em Carmo do Paranaíba e Patrocínio (MG), utilizaram-se de 4.3 16. No Estado de São Paulo, em Limeira, a Usina Santa Bárbara utilizou 51 "escravos", e, em Pirapora do Bom Jesus, a Fazenda Cacique usou 32.
Esses são casos comprovados legalmente c reconhecidos como "trabalho escravo". No entanto existem inúmeros casos envolvendo trabalho forçado que acabam sendo julgados como infrações trabalhistas, sem maiores punições para os responsáveis. Foi o que ocorreu, por exemplo, com 92 lavradores vindos, em maio de 1995, do norte de Minas para Luís Antó­nio - na região de Ribeirão Prelo (SP) -, para cortar cana. O empreiteiro que os trouxe colocou-os em um galpão de 18 metros quadrados, onde viviam em condições subumanas. Esses trabalhadores foram abandonados pelo "gato" e não encontraram emprego. Ficaram sem alimentos, partilhavam de uma só privada, já sem descarga, e não ti­nham chuveiro. O "gato" desapareceu, o dono do galpão disse que não tinha nada com a questão. A Polí­cia Militar interditou o local e "recolheu" os trabalhadores, que pos­teriormente deveriam ser devolvi­dos às suas cidades. E o episódio, assim, acabou. Corno esse, existem dezenas de outros casos, às vezes até mais graves do que o trabalho forçado, mas que, por várias razões, não entram nas "estatísticas".
É preciso considerar ainda que não há fiscais do trabalho em número suficiente e grande parte dos existentes não cumprem sua tarefa a contento. As Delegacias Regionais do Trabalho contavam com 2.695 fiscais em 1993. O trabalho forçado ou escravo assumiu tão graves proporções que, em setem­bro de 1992, o governo criou o Pro­grama de Erradicação do Trabalho Forçado e do Aliciamento de Tra­balhadores (Perfor), mas ainda não conseguiu regulamentá-lo. Até mesmo o Incra perdeu sua capacidade administrativa e fiscalizadora, por falta de pessoal. Um relatório da Associação dos funcionários desse instituto informou que para assentar as 500 mil famílias, cujos processos de desapropriação estão concluídos, bastando a assinatura dos decretos, seria necessário con­tratar mais 8 mil funcionários. Como se sabe, o governo federal (FHC) vem fazendo o inverso: demite.
Violência e cultura
Um processo de maior gravi­dade do que as armas e a brutalidade policial contra o sem-terra é su­jeitá-lo ao conflito cultural que destrói inexoravelmente sua sanidade psíquica, Pior, talvez, que matá-lo fisicamente, alijá-lo da terra significa matar sua alma, transformá-lo em um autômato, alienado da sua cultura — mais um lúpem (individuo desvinculado da produção so­cial ou que vive na extrema misé­ria) que o latifúndio joga na perife­ria suburbana.
Quando o trabalhador é expul­so do campo e toma-se migrante, ele não se integra à nova comunidade urbana. Vive na periferia, à margem, nas favelas ou cortiços, em choque constante com uma cultura que não é a sua. Ocorre, pois, um conflito social e cultural. Perde os seus valo­res culturais e morais, que não pode manter na suburbanidade onde vive, e confronta-se desfavoravelmente com uma nova moral, que lhe deter­mina outro comportamento.
Perdendo o seu espaço físico, sem a sua paisagem, fica indefeso à penetração da cultura urbana. Mas essa aculturação acontece falsamente, com uma absorção ilegí­tima de valores "urbanóides", como a música sertaneja, represen­tada por famosas duplas caipiras do tipo Chitãozinho e Xororó. Essa música e tais duplas, símbolos da profanação cultural que sofre o migrante rural, não são o resultado de uma adaptação, degeneração ou exploração da música rural autêntica, que faz parte do universo do homem do campo: na verdade, são corruptelas ordinárias da country music estadunidense. Em suma, o que esse tipo de música provoca (porque é reconhecida, mas identificada) é a alienação que o joga sem defesas na máquina de massificação industrial.
O migran­te rural transforma-se duplamente em escravo: como trabalhador, lúmpen (mendigo, sem-trabalho)ou subempregado e como potencial consumidor do lixo con­sumista mais kitsch da sociedade capitalista — há uma indústria de vestuário e de toda sorte de objetos lucrando com esse assassinato cultural.
Na outra ponta do consumo, cria-se ironicamente um mercado grã-fino inspirado na miséria cam­ponesa exposta na sociedade urba­na. E o modismo country de butique, a moda de viola eletrônica ex­plodindo nos tapes de camionetas de luxo. Alguns intelectuais até acham chique freqüentar "festas populares" como a caricatural festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, no interior de São Paulo.
O que você tem a ver com isso?
Seria mais "eficiente" escre­ver este texto com uma "boa técnica jornalística". Os jornais não "teorizam" a violência. Os jornalistas acostumaram-s e a ir aos fatos, mos­trar o que aconteceu: o que se de­monstra por si. Evita-se interpretar os acontecimentos e, assim, para o público estes são o que aparentam ser. Na verdade, essa busca da "rea­lidade", que pode parecer materia­lista para alguns, nada mais é — sei que a comparação ó grosseira — que um tratamento "metafísico". Para a metafísica, as coisas são o que são. O bem é o bem, o mal é o mal.
Para entender o fenômeno da violência e da injusta distribuição de terra, será melhor olhar as coisas dialeticamente. Há mais de 2 mil anos, os gregos nos ensinaram que dialeticamente as coisas estão sempre mudando: se aparentam ser de uma forma hoje, é porque foram diferentes ontem além de ter uma origem concreta, plena de con­tradições.
A linguagem jornalística vai direto ao assunto: "aconteceram tantas invasões de terras"; "a polí­cia reprimiu com violência"; "mor­tos, feridos..." São entrevistas com camponeses, militares, políticos, latifundiários e talvez um editorial pedindo uma política agrária. Tudo isso, feito em demasia, aborda ape­nas uma face da questão: justamente a da violência formal, o último ato de acontecimentos e que tem raí­zes bem mais profundas, alicerça­das na estrutura social e afirmadas na nossa tradição histórica.
Enfim, o impacto dramático dos "últimos atos" tem dimensão su­ficiente para despertar o interesse do leitor de jornal: homens, mulheres c crianças fugindo de bombas, tiros e patas de cavalos — alguns morrem. Os efeitos são mais espetaculares do que as causas. Mas, se quisermos entender o problema, é melhor que procuremos suas raízes.
Antes, cabe uma pergunta: o que você tem a ver com isso?
O leitor deste livro, certamente habitante urbano, de cidade média ou grande, com muita sorte talvez já tenha visto um milharal ou uma vaca. A questão agrícola, por­tanto, mais especificamente a vio­lência no campo, pode lhe parecer distante, sobretudo porque também enfrenta no cotidiano ameaças con­cretas à sua vida. Ir à escola, ao tra­balho, ou simplesmente sair de casa são riscos nas grandes e médias ci­dades. Se podemos ser assaltados e mortos por alguém que quer o nosso tênis, por que nos preocuparmos prioritariamente com a violência no campo? Justamente para não sermos assaltados e mortos.
Para justificar essa resposta, devemos ter em mente que a violên­cia no campo é fruto da má distri­buição da terra, que é a raiz da injustiça social. Esta, por sua vez, é a responsável pela extrema riqueza de uns poucos e a miséria de muitos. Dentro desse sistema o homem se brutaliza. O processo atinge a todos. A sociedade consumista urbana agrava as diferenças. O velho huma­nismo ensinava o homem a ser e o novo modismo ensina-o a ter. Em meio a essas contradições econômicas e filosóficas explode a violência formal espancamentos, assassi­natos de camponeses, assaltos nas ci­dades são os resultados do conteúdo de uma sociedade injusta. O princí­pio do processo está no campo.
Fonte: VIOLÊNCIA NO CAMPO:O latifúndio e a reforma agrária de Júlio José Chiavenato