terça-feira, 31 de agosto de 2010

A tendência à barbárie e as perspectivas do socialismo


Por James Petras

As sociedades ocidentais e os Estados estão se deslocando inexoravelmente para condições semelhantes à barbárie; mudanças estruturais estão revertendo décadas de bem estar social e sujeitando o trabalho, os recursos naturais e as riquezas das nações à exploração bruta, à pilhagem e ao saque, rebaixando os padrões de vida e causando descontentamento num nível sem precedentes.

Inicialmente, descreveremos os processos econômicos, políticos e militares que vêm abrindo este caminho à decadência e à decomposição social, e a seguir mostraremos a reação das massas populares à deterioração de suas condições de vida. As profundas mudanças estruturais que acompanham a ascensão da barbárie constituirão a base para considerar as perspectivas para o socialismo no século XXI.

A crescente onda de barbárie

Nas sociedades antigas, a "barbárie" e os seus portadores - os "bárbaros" invasores - foram vistos como uma ameaça vinda das regiões periféricas de Roma ou Atenas. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, os bárbaros vêm de dentro, da elite, com a intenção de impor uma nova ordem que corrói o tecido social e a base produtiva da sociedade, convertendo meios de subsistência estáveis em condições deterioradas e inseguras da vida cotidiana.

A chave para a barbárie contemporânea encontra-se nas estruturas internas do Estado imperial e da economia. Estas incluem:

1. A ascensão de uma elite financeira e especulativa, que tem saqueado trilhões de dólares dos poupadores, investidores, mutuários, consumidores e do Estado, subtraindo enormes recursos da economia produtiva e colocando-os nas mãos da camada parasitária aninhada no Estado e nos mercados financeiros.

2. A elite política militarista, que vem supervisionando um estado de guerra permanente desde meados do século passado. Terror de Estado, guerras intermináveis, assassinatos em zonas fronteiriças e a suspensão das garantias constitucionais tradicionais levaram à concentração de poderes ditatoriais, prisões arbitrárias, torturas e à negação do habeas corpus.

3. Em meio a uma profunda recessão econômica e estagnação, os altos gastos do Estado na construção de um império econômico e militar, às expensas da economia nacional e dos padrões de vida, refletem a subordinação da economia local às atividades do Estado imperial.

4. A corrupção desde o topo, visível em todos os aspectos da atividade do Estado - desde as aquisições de bens e serviços até a privatização e os subsídios para os super-ricos -, incentiva o crescimento do crime internacional de cima para baixo, a lumpenização da classe capitalista e um Estado onde a lei e a ordem se encontram em descrédito.

5. Resultantes dos elevados custos de construção do império e da pilhagem da oligarquia financeira, os encargos sócio-econômicos recaem diretamente sobre os ombros dos trabalhadores assalariados, aposentados e trabalhadores por conta própria, determinando uma grande mobilidade descendente na escala social ao longo do tempo. Com a perda de empregos e o desaparecimento das posições mais bem remuneradas, as retomadas de casas pelos bancos crescem exponencialmente e as classes médias, antes estáveis, encolhem, e os trabalhadores são forçados a alongar suas jornadas de trabalho diárias e a trabalhar durante um maior número de anos.

6. As guerras imperiais, que se espalham pelo mundo e são direcionadas a populações inteiras, que sofrem com os bombardeios e as operações clandestinas de terror, geram, em oposição, redes terroristas, que também atingem alvos civis nos mercados, transportes e espaços públicos. O mundo vai se parecendo ao pesadelo hobbesiano de "todos contra todos".

7. Um crescente extremismo etno-religioso ligado ao militarismo é encontrado entre os cristãos, judeus, muçulmanos e hindus, que substitui a solidariedade de classe internacional por doutrinas de supremacia racial e penetra as estruturas profundas dos Estados e das sociedades.

8. O desaparecimento dos Estados europeus e asiáticos de bem-estar social coletivo - nomeadamente, a ex-URSS e a China - levantou as pressões competitivas sobre o capitalismo ocidental e o encorajou à revogação de todas as concessões de bem-estar social obtidas pela classe trabalhadora no período pós-II Guerra Mundial.

9. O fim do "comunismo" e a integração da social-democracia ao sistema capitalista levaram a um enfraquecimento severo da esquerda, que os protestos esporádicos dos movimentos sociais não conseguiram substituir.

10. Diante do atual assalto às condições de vida dos trabalhadores e da classe média, só se vêem protestos esporádicos, no melhor dos casos, e impotência política, no pior.

11. A exploração maciça do trabalho nas sociedades capitalistas pós-revolucionárias, como a China e o Vietnã, compreende a exclusão de centenas de milhões de trabalhadores migrantes dos serviços públicos elementares de educação e saúde. A pilhagem sem precedentes e a captura, por oligarquias nacionais e multinacionais estrangeiras, de milhares de lucrativas empresas públicas estratégicas da Rússia, das repúblicas da ex-União Soviética, dos países da Europa Oriental, dos Bálcãs e dos países bálticos, foram a maior transferência de riqueza pública para mãos privadas, em curto espaço de tempo, em toda a História.

Em resumo, a barbárie surgiu como uma realidade definida, produto da ascensão de uma classe dominante financeira parasitária e militarista. Os bárbaros encontram-se aqui e agora, presentes dentro das fronteiras das sociedades ocidentais e seus Estados. Eles governam e perseguem agressivamente uma agenda que está continuamente a reduzir os padrões de vida, a transferir a riqueza pública para os seus cofres privados, a pilhar recursos públicos, a violar direitos constitucionais no exercício de suas guerras imperiais, a segregar e perseguir milhões de trabalhadores imigrantes e a promover a desintegração e o desaparecimento do trabalho estável e de classe média. Mais do que em qualquer outro momento na história recente, o 1% mais rico da população controla uma parcela crescente das riquezas e das rendas nacionais.

Mitos e realidades do capitalismo histórico

A retirada, em grande escala e de forma sustentada, dos direitos sociais e previdenciários, da segurança no emprego, e as reduções de salários e aposentadorias, demonstram a falsidade da idéia do progresso linear do capitalismo. Essa reversão, produto do poder ampliado da classe capitalista, demonstra a validade da proposição marxista de que a luta de classes é o motor da História - na medida em que, pelo menos, a própria condição humana é considerada como sua peça central.

A segunda premissa falsa - a de que os Estados organizados em "economias de mercado" têm como pré-requisito a paz, tendo como corolário a ascendência dos "mercados" sobre o militarismo - é refutada pelo fato de que a principal economia de mercado - os Estados Unidos - tem permanecido em constante estado de guerra desde o início da década de 1940, estando ativamente engajada em guerras em quatro continentes, até os dias de hoje, e com perspectiva de novas, maiores e mais sangrentas guerras no horizonte. A causa e conseqüência da guerra permanente é o crescimento de um monstruoso "Estado de segurança nacional" que não reconhece fronteiras nacionais e absorve a maior parte do Orçamento do país.

O terceiro mito do "capitalismo avançado maduro" é o de que este sempre revoluciona a produção através da inovação e da tecnologia. Com a ascensão da elite financeira especulativa e militarista, as forças produtivas foram saqueadas e a "inovação" é em grande parte direcionada à elaboração de instrumentos financeiros que exploram os investidores, reduzem os ativos e acabam com o trabalho produtivo.

Enquanto o império cresce, a economia local se contrai, o poder está centralizado no Executivo, o poder legislativo é reduzido e aos cidadãos é negada uma representação efetiva, ou mesmo o poder de veto através de processos eleitorais.

A resposta das massas ao aumento da barbárie

A ascensão da barbárie em nosso meio tem provocado revolta pública contra seus principais executores. As pesquisas de opinião têm reiteradamente encontrado:

(1) Profunda aversão e revolta contra todos os partidos políticos.

(2) Grande desconfiança, nutrida pela maioria da população, contra a elite empresarial e política.

(3) Rejeição, também pela maioria, da concentração de poder corporativo e do seu abuso, principalmente por parte dos banqueiros e financistas.

(4) Questionamento amplo das credenciais democráticas dos líderes políticos que agem a mando da elite empresarial e promovem as políticas repressivas do Estado de segurança nacional.

(5) Rejeição, pela grande maioria da população, da pilhagem do Tesouro nacional para salvação dos bancos e da elite financeira, com a imposição de programas de austeridade regressivos sobre a classe média trabalhadora.

Perspectivas para o socialismo

A ofensiva capitalista teve certamente um grande impacto sobre as condições objetivas e subjetivas da classe média trabalhadora, empobrecendo- a e provocando uma onda crescente de descontentamento pessoal, que ainda não se traduziu numa movimentação anticapitalista massiva, ou mesmo numa resistência dinâmica e organizada.

As grandes mudanças estruturais requerem um melhor entendimento das atuais circunstâncias adversas e a identificação de novas instâncias e meios onde se desenvolvem a luta de classes e de transformação social.

Um problema-chave é a necessidade de se recriar uma economia produtiva e reconstruir uma classe trabalhadora industrial após anos de pilhagem financeira e desindustrialização, não necessariamente para as poluidoras indústrias do passado, mas certamente para novas indústrias que criem e utilizem fontes de energia limpa.

Em segundo lugar, as sociedades capitalistas altamente endividadas necessitam, fundamentalmente, sair do modelo de construção imperial militarista de alto custo em direção a um modelo de austeridade financeira baseado na classe e que imponha os sacrifícios e as reformas estruturais aos setores bancário, financeiro e comercial de grande varejo, que substitui a produção local pela importação de artigos de consumo de baixo custo.

Em terceiro lugar, o enxugamento do setor financeiro e do comércio retalhista exige a melhoria das qualificações dos trabalhadores que serão deslocados ou desempregados, bem como mudanças no setor de TI, de forma a acomodar as próprias mudanças econômicas. Exige, também, a mudança de um paradigma - da renda monetária para o rendimento social -, em que a educação pública e gratuita de alto nível, o acesso universal à saúde e as aposentadorias abrangentes substituirão o consumismo global financiado por dívidas. Isso pode se tornar a base para o fortalecimento da consciência de classe contra o consumismo individual.

Esta é a questão: como passar de uma posição em que a classe trabalhadora se encontra fragmentada e enfraquecida e os movimentos sociais em recuo ou na defensiva a uma posição em que seja possível lançar uma ofensiva anticapitalista?

Vários fatores subjetivos e objetivos já permitem o trabalho nesse sentido. Primeiro, há uma negatividade crescente contra a grande maioria dos atuais operadores políticos e, em particular, contra as elites econômicas e financeiras que estão claramente identificadas como responsáveis pelo declínio nos padrões de vida. Em segundo lugar, há o ponto de vista popular, compartilhado por milhões de pessoas, de que os atuais programas de austeridade são claramente injustos - com os trabalhadores a pagar pela crise que a classe capitalista produziu. Até o momento, no entanto, estas maiorias são mais "anti"-status quo do que "pró"-transformação. A transição do descontentamento privado para a ação coletiva é uma questão em aberto quanto a quem a desencadeará e como o fará, mas a oportunidade está presente.

Existem vários fatores objetivos que podem deflagrar uma mudança qualitativa do descontentamento, deslocando-o da raiva passiva rumo a um maciço movimento anticapitalista. Um "duplo mergulho" na recessão, o fim da atual recuperação anêmica e o início de uma recessão mais profunda e prolongada ou de uma depressão poderiam desacreditar ainda mais os governantes atuais e seus aliados econômicos.

Em segundo lugar, o aprofundamento interminável da austeridade poderá desacreditar a noção atual, difundida pela classe dominante, de que os sacrifícios atuais são necessários para se obterem ganhos futuros, abrindo as mentes e encorajando os corpos a se moverem à procura de soluções políticas, de forma a alcançar ganhos no presente e infligir dor às elites econômicas.

As inesgotáveis e "invencíveis" guerras imperiais que sangram a economia e a classe trabalhadora podem, em última análise, criar uma consciência de que a classe dominante oferece "sacrifícios" à nação sem nenhuma finalidade "útil".

Provavelmente, o efeito combinado de uma nova etapa da recessão, a austeridade perpétua e as estúpidas guerras imperiais acabarão por transformar o mal-estar atual e a difusa hostilidade das massas contra a elite econômica e política em favor dos movimentos socialistas, partidos e sindicatos.

James Petras é sociólogo, nascido em Boston. Publicou mais de sessenta livros de economia política e, no terreno da ficção, quatro coleções de contos.

Fonte: Correio da Cidadania.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Que crise económica? Os lucros aumentam!


Por James Petras [*]

Enquanto os progressistas e os esquerdistas escrevem sobre as "crises do capitalismo", os industriais, as companhias petrolíferas, os banqueiros e muitas outras grandes empresas de ambos os lados do Atlântico e da costa do Pacífico encaminham-se sorrateiramente para a banca.

A partir do primeiro trimestre deste ano, os lucros das empresas dispararam entre vinte a mais de cem por cento ( Financial Times, 10/Agosto/2010, p. 7). Na realidade, os lucros das empresas subiram mais do que antes do início da recessão em 2008 ( Money Morning, 31/Março/2010). Contrariamente aos bloggers progressistas as taxas dos lucros estão a subir em vez de descer, principalmente entre as maiores empresas ( Consensus Economics, 12/Agosto/2010). O acréscimo dos lucros empresariais é consequência directa do agravamento das crises da classe trabalhadora, dos funcionários públicos e privados e das pequenas e médias empresas.

No início da recessão, o grande capital eliminou milhões de postos de trabalho (um em cada quatro americanos ficou desempregado em 2010), conseguiu recuos dos patrões dos sindicatos, beneficiou de isenções de impostos, de subsídios e de empréstimos praticamente sem juros dos governos locais, estaduais e federal.

Quando a recessão bateu no fundo temporariamente, os grandes negócios duplicaram a produção com a restante mão-de-obra, intensificando a exploração (maior produção por trabalhador) e reduziram os custos passando para a classe trabalhadora uma fatia muito maior dos encargos com os seguros de saúde e com os benefícios de pensões a aquiescência dos responsáveis milionários dos sindicatos. O resultado é que, embora as receitas tenham diminuído, os lucros subiram e os balancetes melhoraram ( Financial Times, 10/Agosto/2010). Paradoxalmente, os directores-gerais utilizaram o pretexto e a retórica das "crises" oriunda dos jornalistas progressistas para impedir os trabalhadores de exigirem uma fatia maior dos lucros florescentes, ajudados pela reserva cada vez maior de trabalhadores desempregados e sub-empregados como possíveis "substitutos" (amarelos) no caso de acções de protesto.

A actual explosão de lucros não beneficiou todos os sectores do capitalismo: a sorte grande saiu sobretudo às maiores empresas. Em contrapartida, muitas pequenas e médias empresas registaram altas taxas de falências e de prejuízos, o que as tornou baratas e presa fácil para aquisição pelos "grandes chefões" ( Financial Times, 01/Agosto/2010). As crises do capital médio levaram à concentração e centralização do capital e contribuíram para a taxa crescente de lucros das empresas maiores.

O diagnóstico falhado das crises capitalistas feito pela esquerda e pelos progressistas tem sido um problema omnipresente desde o fim da II Guerra Mundial, quando nos foi dito que o capitalismo estava 'em estagnação' e se dirigia para um colapso final. Os recentes profetas do apocalipse viram na recessão de 2008-2009 a queda definitiva e total do sistema capitalista mundial. Cegos pelo etnocentrismo euro-americano, não viram que o capital asiático nunca entrou nas "crises finais" e a América Latina teve uma versão suave e passageira ( Financial Times. 09/Junho/2010, p. 9). Os falsos profetas não conseguiram reconhecer que os diferentes tipos de capitalismo são mais ou menos susceptíveis às crises… e que algumas variantes tendem a sofrer rápidas recuperações (Ásia, América Latina, Alemanha) enquanto outras (EUA, Inglaterra, Europa do Sul e do Leste) são mais susceptíveis a recuperações anémicas e precárias.

Enquanto a Exxon-Mobil arrebanhou mais de 100% de aumento de lucros em 2010 e as empresas de automóveis registaram os seus maiores lucros dos últimos anos, os salários dos trabalhadores e o seu nível de vida diminuíram e os funcionários públicos sofreram pesados cortes e despedimentos maciços. É óbvio que a recuperação de lucros empresariais se baseia na mais dura exploração da mão-de-obra e de maiores transferências de recursos públicos para as grandes empresas privadas. O estado capitalista, com o presidente democrata Obama à frente, transferiu milhares de milhões para o grande capital através das operações de salvamento, empréstimos praticamente isentos de juros, cortes nos impostos e pressionou a força de trabalho a aceitar salários mais baixos e reduções na saúde e das pensões. O plano da Casa Branca para a 'recuperação' resultou para lá de todas as expectativas – os lucros empresariais recuperaram; "só" a grande maioria dos trabalhadores é que se afundou mais nas crises.

As previsões falhadas dos progressistas quanto à morte do capitalismo são consequência directa da subavaliação da dimensão com que a Casa Branca e o Congresso iria pilhar o erário público para ressuscitar o capital. Subavaliaram o grau com que o capital iria ser aliviado para sacudir toda a carga da recuperação de lucros para cima das costas dos trabalhadores. Neste aspecto, a retórica progressista sobre a "resistência da força de trabalho" e o "movimento sindical" reflectiram a falta de compreensão de que praticamente não tem havido qualquer resistência à redução dos salários sociais e monetários porque não existe organização da força de trabalho. O que se intitula como tal está completamente ossificado e ao serviço dos defensores da Wall Street do Partido Democrata na Casa Branca.

PROCESSO PRECÁRIO

O que o actual impacto desigual e injusto do sistema capitalista nos diz é que o capitalismo consegue ultrapassar as crises aumentando apenas a exploração e anulando décadas de "ganhos sociais". Mas o actual processo de recuperação de lucros é altamente precário porque se baseia na exploração de inventários actuais, taxas de juros baixas e cortes nos custos da mão-de-obra ( Financial Times, 10/Agosto/2010, p. 7). Não se baseia em novos investimentos privados dinâmicos nem no aumento da capacidade produtiva. Por outras palavras, são "ganhos ocasionais" – não são lucros provenientes de receitas de vendas acrescidas nem de mercados de consumo em expansão. Como poderiam ser – se os salários estão a diminuir e o desemprego, o sub-emprego e a redução da mão-de-obra é maior do que 22%? Obviamente, esta explosão de lucros a curto prazo, com base em vantagens políticas e sociais e num poder privilegiado, não é sustentável. Há limites para os despedimentos maciços de funcionários públicos e para os ganhos de produção a partir da exploração intensificada da mão-de-obra… alguma coisa tem que ceder. Uma coisa é certa: O sistema capitalista não vai cair nem ser substituído por causa da sua podridão interna ou"contradições".
15/Agosto/2010
[*] Sociólogo. Ver obras do autor.

O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=20620 .
Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Bolívia-Equador: O Estado contra os povos indígenas

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Os povos originários, que criaram as novas condições para a sua liberdade, não vão continuar a tolerar a marginalização política. Tiveram a força para travar o neoliberalismo e agora não querem perder a oportunidade.

Por Raúl Zibechi

“São uns gringuitos que agora vivem em grupinhos das ONGs. Vão contar essa a outro. Essa gente já tem a barriguinha cheia”, disse o presidente do Equador, Rafael Correa, referindo-se aos manifestantes que pertencem à Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) [1]. Evo Morales disse quase o mesmo: “Como a direita não encontra argumentos para se opor ao processo de mudança, agora recorre a alguns dirigentes camponeses, indígenas ou originários, que são pagos com prebendas de algumas ONGs” [2].

Pelos vistos, os presidentes dos dois países nem repararam que estão a usar os mesmos argumentos dos seus inimigos, quando acusavam os movimentos sociais de fazerem parte da “subversão comunista internacional” ou de serem financiados pelo “ouro de Moscovo”. Dois erros em um só: pensar que os índios podem ser manipulados, e que o são a partir de fora do país. Não é de estranhar que eles tenham sentido as afirmações dos seus presidentes como agravos que procuram desviar a atenção dos verdadeiros problemas.

Poderá ser certo, como afirmou o vice-presidente da Bolívia, Alvaro García Linera, que a agência de cooperação dos Estados Unidos, a USAID, tenha infiltrações em alguns movimentos sociais para [os levarem a] se manifestarem contra o governo. Garantiu que, dos 100 milhões de dólares que os EUA investem no seu país, 20 são gastos em despesas técnicas e o resto “é para os seus amiguinhos, para a sua clientela política, patrocinando cursos, publicações e grupos que promovem conflitos” [3].

As organizações sociais envolvidas negaram serem financiadas pela USAID, mas o que mais chama a atenção é que essa crítica seja feita no preciso momento em que levam a cabo mobilizações contra o governo, e não antes. O primeiro ministro dos Hidrocarbonetos do governo de Evo foi mais longe e lembrou ao presidente que deve explicar porque é que permitiu que a USAID, o Banco Mundial e as ONGs definissem os traços do Estado Plurinacional vigente. Com efeito, “a USAID financiou em 2004 a Unidade de Coordenação para a Assembleia Constituinte”, além de outras actividades oficiais [4].

A marcha indígena na Bolívia

Em 17 de Julho, centenas de índios das terras baixas concentraram-se em Trinidad, capital do departamento do Beni, a umas cinco horas de Santa Cruz de la Sierra. A sua intenção era fazer uma marcha de 1.500 quilómetros a pé, até La Paz, subindo das regiões da selva até 4.000 metros de altitude. A Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB), que reúne 34 nações do oriente em onze organizações regionais [5], convocou os marchantes que eram apoiados pelo Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu (CONAMAQ).

Estas são duas das cinco principais organizações indígenas que, em 2006, formaram o Pacto de Unidade durante a Assembleia Constituinte, e até agora eram um sólido apoio ao governo de Evo Morales. As outras três, a poderosa Confederação Sindical Única de Trabalhadores Agrícolas da Bolívia, a Confederação das Comunidades Originárias da Bolívia (CSCB) e a Federação de Mulheres da Bolívia Bartolina Sisa, continuam a apoiar o governo.

Desde o começo deste ano, a CIDOB vinha negociando com o ministro das Autonomias, Carlos Romero, a Lei-Quadro das Autonomias, chegando a consenso em 50 artigos, enquanto noutros treze havia divergências [6]. Os pontos de desacordo foram basicamente dois: os povos indígenas reclamavam que os acordos fossem aprovados por métodos de usos e costumes, enquanto o Estado exige o referendo. O segundo tem a ver com os territórios indígenas que transpõem limites departamentais, já que os povos pedem que as autonomias passem por cima desses limites.

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No fundo trata-se de uma questão de soberania: os povos das terras baixas exigem que as comunidades tenham o direito a vetarem os empreendimentos que afectem os seus territórios, em particular as concessões mineiras e hidrocarboníferas, e que os assentos na Assembleia Plurinacional passem de 7 para 18. Iniciada a marcha, o governo decidiu negociar em separado com algumas regionais da CIDOB para dividir o movimento. Por esse motivo, a marcha que partiu de Trinidad em 22 de Junho deteve-se dias depois em Asunción de Guarayos, a 400 km de Santa Cruz, onde uma delegação oficial chegou a um acordo em oito pontos com a CIDOB [7].

A segunda estratégia do governo foi lançar índios contra índios. Evo Morales apareceu numa assembleia dos seis sindicatos de cocaleros que repudiaram a marcha da CIDOB e se mostraram dispostos a impedi-la [8]. O ex-porta-voz do governo, Alex Contreras Baspineiro, indicou que “antes de encontrar uma solução pacífica e concertada o governo começou uma campanha mediática milionária para tratar de desacreditar a mobilização indígena” [9]. E acrescentou: “Em cinco anos de governo, nunca se tinha visto este tipo de divisão e menos ainda estas ameaças de confrontações”.

A terceira foi a difamação, acusando-os de estarem a ser financiados pela USAID. Por isso o presidente da CIDOB, Adolfo Chávez, não só negou a acusação e recordou que os marchantes têm problemas de alimentação, como desafiou o governo: “Desafiamos o governo a expulsar a USAID do país, e logo veremos quem é que é afectado” [10].

Contreras é um reconhecido jornalista social boliviano que acompanhou a I Marcha Pelo Território e Pela Dignidade, em 1990, que correspondeu ao início da recomposição dos movimentos em pleno período neoliberal. Devido ao seu empenho e à sua cobertura especial das marchas indígenas, foi homenageado pelos principais médias [mídias] do país. Nessa marcha, que também começara em Trinidad, conheceu Pedro Nuni, representante do povo mojeño e agora deputado do MAS [Movimento para o Socialismo], que lhe disse que “alguns dos ministros do governo indígena estão a pôr indígenas contra indígenas” [11].

Um dos resultados da marcha é que o governo perdeu a sua maioria de dois terços no parlamento (111 votos em 166), já que oito deputados indígenas decidiram afastar-se do MAS. Em suma, Contreras pensa que, se o governo persistir em não negociar, pode estar em perigo a própria governabilidade do país. Por isso considera que é de evitar “uma confrontação entre organizações indígenas e a diabolização de alguns dirigentes”, e há sobretudo que tentar negociar e “resgatar um pilar deste processo de mudança: a cultura da vida, da paz, do diálogo e da concertação social” [12].

No entanto o governo recusou as principais reivindicações da CIDOB, argumentando que de contrário iria violar a Constituição. O ministro Romero argumentou que algumas dessas exigências “desrespeitam os direitos de todos os bolivianos” porque só beneficiam esse sector, e que não se pode dar aos povos uma representação maior do que a percentagem da população que representam no país [13].

A CONAE contra Correa

Em 25 de Junho realizou-se a cimeira dos presidentes da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), onde um dos temas centrais foi a questão da plurinacionalidade. A reunião dos oito presidentes foi em Otavalo, uns 60 km a norte de Quito, cidade maioritariamente quichua. Apesar do tema

Evo Morales e Rafael Correa, presidentes da Bolívia e do Equador.

Evo Morales e Rafael Correa, presidentes da Bolívia e do Equador.

que ia ser debatido, as organizações indígenas não foram convidadas. Por isso a CONAIE decidiu instalar nessa mesma cidade o seu Parlamento Plurinacional, para denunciar que não pode haver plurinacionalidade sem os indígenas.

Cerca de três mil pessoas realizaram o desfile pacífico pela cidade, entre cantos e danças que celebravam o Inty Raymi, o ano novo andino, e ao mesmo tempo recordavam o 20º aniversário do primeiro levantamento índio, que deu início ao processo de mobilizações que acabou por levar Rafael Correa à presidência. A cimeira estava protegida por polícia a cavalo e os cavalos espantaram-se à chegada dos manifestantes, que foram até à porta do recinto para entregar uma carta ao seu “irmão” Evo Morales.

Os indígenas estão em confronto com o governo devido à lei das águas e às concessões às empresas mineiras, o que provocou mobilizações, greves, bloqueios e levantamentos em grande número [14]. O conflito entre a CONAIE e o governo não é novo, se bem que agora pareça ser mais grave devido às acusações da justiça contra os dirigentes. No dia a seguir à cimeira, o ministério público de Imbabura, onde se situa Otavalo, iniciou uma investigação contra as organizações indígenas

Nela se diz que “um grupo de cidadãos de raça indígena” rompeu o cerco policial onde se reunia a ALBA “gritando palavras de ordem que atentam contra a segurança da ordem pública e o mais grave foi que “um agente da polícia foi sequestrado pelas esposas” [??]. Com esse fundamento acusam-se os dirigentes da CONAIE e da Ecuarunari (a organização quichua da serra) de nada menos que “sabotagem e terrorismo” [15]. É uma acusação de extrema gravidade que procura intimidar os dirigentes.

Segundo o advogado e professor universitário Mario Melo, o problema de fundo é que a presença da CONAIE no exterior do recinto onde se reuniam os presidentes “mostrou claramente, perante a opinião pública nacional e internacional, que as organizações representativas das nacionalidades e povos do Equador estão a ser excluídas da definição das políticas públicas que lhes competem” [16]. Por isso se produz uma resposta política disfarçada de acção jurídica para “amedrontar e desmobilizar” os movimentos.

Os dirigentes indígenas responderam ao desafio. Marlon Santi, presidente da CONAIE, apresentou-se à magistrada para tomar conhecimento das acusações e para dar a sua versão. Em 5 de Junho, um comunicado conjunto da Ecuarunari e da CONAIE indica que as acusações de terrorismo carecem de fundamento jurídico e que se trata de “uma perseguição política contra o movimento indígena e os dirigentes pelo simples facto de discordarem das políticas do governo” [17].

O comunicado lembra que o artigo 98ª da nova Constituição reconhece o “direito à resistência” quando estejam ameaçados os direitos. E termina com uma frase que deixa prever mais confrontações: “Os processos judiciais contra os dirigentes mais não fazem do que evidenciar a baixeza de espírito dos governantes e uma grave ameaça para a democracia e para a paz dos equatorianos”.

Pérez Guartambel, presidente da União de Sistemas Comunitários de Água do Azuay (Cuenca), também foi acusado de sabotagem e terrorismo com base num protesto de massas na sua aldeia, Tarqui, em 4 de Maio. A Frente de Mulheres Defesa de Pachamama, por seu lado, formula denúncias semelhantes. Tudo indica que o processo que se vive no Equador implica uma ruptura profunda entre movimentos e governo, questão que na Bolívia não chegou tão longe.

Há um abismo que os separa, cuja linha divisória é o projecto de país e o denominado “desenvolvimento”- Correa está convicto de que a maior ameaça ao seu projecto, que denomina “Socialismo do século XXI”, vem do que ele denomina a esquerda “infantil” e grupos ambientalistas e indígenas que, diz, recusam a modernidade. Por isso critica os que “dizem não ao petróleo, às minas, à utilização dos nossos recursos não renováveis. É como um mendigo sentado num saco de ouro” [18].

O Estado Plurinacional em questão

Os processos políticos e sociais nos dois países parecem-se como duas gotas de água. Ambos aprovaram um Estado Plurinacional e novas constituições, mas na hora de as aplicarem encontram sérios entraves. São as bases sociais indígenas e dos sectores populares urbanos, que levaram ao governo Evo Morales e Rafael Correa, que estão a resistir aos “seus” governos. Nos dois casos, os governos optaram pelo extractivismo mineiro e petrolífero para garantir receitas fiscais, em vez de apontarem para o Bem Viver como antes haviam dito.

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A FEJUVE (Federação das Juntas Vicinais de El Alto), uma das mais importantes organizações sociais da Bolívia, emitiu um duro documento, o Manifesto Político do XVI Congresso Ordinário [19]. Diz que, “apesar de ter um presidente indígena como Evo Morales, o Estado continua a ser governado por uma oligarquia crioula”, pois “continua a manter o sistema económico capitalista e o sistema político neoliberal”. Assegura que o povo pobre continua a ser “dominado politicamente”, “explorado economicamente” e “marginalizado racial e culturalmente”.

Mais grave ainda. “O governo do MAS, assim que assumiu o poder, só usou os povos indígenas e os sectores populares para as suas campanhas políticas, mas estes continuam a ser excluídos das decisões políticas e apenas são utilizados pelo governo para se legitimar e se empoleirar no poder”. Além disso exige que o governo não se intrometa nas organizações sociais, que haja uma mudança na conduta do vice-presidente Alvaro García Linera e da sua gente, que define como “inimigos da classe camponesa e indígena”, e apoia a marcha dos povos do oriente.

O tom e o conteúdo são muito fortes. A FEJUVE não é uma organização qualquer, é uma das protagonistas da Guerra do Gás, em Outubro de 2003, que provocou a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada e fez desmoronar-se o neoliberalismo. Agora admite a possibilidade de pedir a renúncia de Evo. No Equador, a CONAIE também é muito importante, foi protagonista de uma dezena de levantamentos desde 1990, derrubando três governos. Uma ruptura com estas organizações é muito grave para qualquer governo, mais ainda para os que nelas se apoiam.

No fundo, estão a aparecer as primeiras brechas no Estado Plurinacional, um edifício ainda por acabar de construir. Porque surgem essas brechas? Porque há uma intensa luta pelo poder, já que os povos originários não se sentem obrigados a aceitar o referencial do Estado-nação, a que se remete o Estado Plurinacional. Neste ponto há dois olhares diferentes, cada um deles tentando dar conta dos processos em curso.

Alberto Acosta, economista equatoriano e ex-presidente da Assembleia Constituinte, considera que se está atravessando o processo de aprovar as leis que façam coincidir o texto com a vida quotidiana. Sem isso, a Constituição, por mais avançada que seja, não dá em nada. O problema é que o presidente Correa acha que as leis da água e das comunicações não são importantes, o que para Acosta equivale a dizer que “a Constituição não é fundamental nem prioritária”. E pergunta: “Será que a Constituição começa a se converter em camisa de forças do presidente Correa?” [20].

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Pensa que a oposição de direita, que se opôs à Constituição, está a obstaculizar cada lei para impedir qualquer avanço. Por outro lado, “a maneira de governar de Correa, que em essência é uma liderança do género que leva tudo à frente, não deixa espaço para o debate”. A conclusão é que a Constituição que ia refundar o país “está atada a uma manipulação política que não garante a sua plena vigência”. A sociedade não a defende, mas da parte do governo “há uma espécie de contra-revolução legal”.

O escritor e filósofo boliviano Rafael Bautista sustenta que refundar o Estado na Bolívia sem potenciar as nações originárias é o mesmo que não mudar nada ou “pura cosmética”. Mas não havendo refundação, ou seja descolonização, “o que acontece é uma pura recomposição do carácter senhorial do Estado” [21]. Em suma, mais Estado colonial assente na crença da superioridade sobre os índios que se perpetua no Estado Plurinacional, porque é um modelo que na prática não sofreu modificações.

Bautista diz que “a mudança já não consiste numa transformação dos conteúdos do novo Estado”, mas sim “numa adequação subordinada do plurinacional às necessidades funcionais da institucionalidade estatal”. Isto é, precisamente, aquilo que a marcha revela: o sentimento de superioridade sobre os índios (são manipulados, não agem por si próprios, diz o governo) e a impossibilidade de que o Estado deixe de estar “acima” e no centro.

A essência do plurinacional passa por uma ampliação do âmbito das decisões, uma ampliação do poder. “O plurinacional não quer dizer soma quantitativa dos actores, mas sim o modo qualitativo de exercer a decisão: somos efectivamente plurais quando ampliamos o âmbito da decisão”. E é isso que está a acontecer, e por isso Bautista diz que o governo actual “manda mandando, não manda obedecendo”.

O governo não transfere poderes para os povos originários, mas desconcentra-os por gobernaciones [governos provinciais] e alcaldías [governos municipais], ou seja, reproduz a lógica dos privilégios porque, desde a Colónia, são esses os espaços das elites locais. O que a marcha está mostrando é a renúncia a transformar o Estado, para se limitar a melhorar a sua performance, o que implica “a actualização do paradoxo senhorial”, conclui Bautista. A marcha indígena não faz mais do que revelar na sua nudez a proclamada descolonização do Estado.

Os povos originários, que criaram as novas condições para a sua liberdade, não vão continuar a tolerar a marginalização política. Sabem que os Estados precisam de explorar os recursos naturais para pagar as suas contas. Mas também sabem que essa lógica os conduz à destruição. Por isso se puseram em marcha: porque tiveram a força para travar o neoliberalismo e agora não querem perder a oportunidade.

[*] Raúl Zibechi é analista internacional do semanário Brecha de Montevideo, docente e investigador sobre movimentos sociais na Multiversidade Franciscana da América Latina, e assessor de vários grupos sociais. Escreve todos os meses para o Programa das Américas (http://www.cipamericas.org/).

Referências

Alberto Acosta, “Rafael Correa nos invita a violar la Constitución”, diario Expreso, Guayaquil, 26 de junho de 2010.

Alex Contreras Baspineiro, “Indígenas contra indígenas”, ALAI, 29 de junho de 2010.

Andrés Soliz Rada, “Evo y Usaid”, Bolpress, 3 de julho de 2010.

FEJUVE El Alto, “Manifiesto político del XVI Congreso Ordinario”, 27 de junho de 2010.

“Lucha Indígena” No. 47, julho de 2010, Cuzco.

María José Rodríguez, “El iceberg tras las luchas por los recursos”, Bolpress, 2 de julho de 2010.

Mario Melo, “La justicia penal como arma de represión política”, Red de Comunicadores Interculturales Bilingües del Ecuador, 1 de julho de 2010.

Patricia Molina, “Crónica d ela VII Marcha Indígena por la autonomía y la dignidad”, Bolpress, 7 de julho de 2010.

Rafael Bautista, “Bolivia: ¿Qué manifiesta la marcha indígena?”, Bolpress, 30 de junho de 2010.

Notas:

[1] Telesur TV, em http://www.telesurtv.net/, 25 de Junho de 2010.

[2] “La mano de EE.UU. en el conflicto indígena”, em http://www.prensamercosur.com.ar/, 2 de Julho de 2010.

[3] La Jornada, 26 de Junho de 2010.

[4] Andrés Soliz Rada, “Evo y USAID”, Bolpress, 3 de Julho de 2010.

[5] São mojeños, guaranis, trinitários, tacanas, izozeños, yukis, mosetenes, guaraios, sirionós, e matacos entre outros.

[6] Patricia Molina en Bolpress, 7 de Julho de 2010.

[7] “Detienen temporalmente la marcha indígena”, Bolpress, 7 de Julho de 2010.

[8] Agencia Boliviana de Información (ABI) 5 de Julho de 2010.

[9] “Indígenas contra indígenas”, ALAI, 29 de Junho de 2010.

[10] Idem e agências.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Agencia Boliviana de Información, 8 de Julho de 2010.

[14] Ver “Ecuador: Se profundiza la guerra por los bienes comunes”, Programa de las Américas, 19 de Outubro de 2009.

[15] Mario Melo, “La justicia penal como arma de represión política”, 1 de Julho, http://www.redci.org/.

[16] Idem.

[17] “La ‘revolución ciudadana’ persigue a los dirigentes indígenas y sociales del país”, CONAIE e Ecuarunari, 5 de Julho de 2010.

[18] Agencia Reuters, 6 de Julho de 2010.

[19] FEJUVE, 27 de Junho de 2010 em http://www.alminuto.com.bo/.

[20] Entrevista a Alberto Acosta no Expreso, Guayaquil, 26 de Junho de 2010.

[21] Rafael Bautista, “¿Qué manifiesta la marcha indígena?”, Bolpress, 30 de Junho de 2010.

Artigo original (em castelhano) aqui. Tradução Passa Palavra.

Fonte: Passa Palavra.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Jagunços e PM de Minas Gerais invadem assentamento e espancam trabalhadores



Divulgamos nota do Movimento Terra Trabalho e Liberdade sobre violência policial que ocorreu em Minas Gerais


O dia 31 de julho de 2010 será marcado para sempre para as famílias de trabalhadores que conquistaram a Fazenda São Domingos no Triangulo Mineiro. Neste dia, por volta das 14 horas, um grupo de jagunços ligados ao sindicato dos trabalhadores rurais da região, dirigido pelo PT, tentou ocupar a fazenda e desconstituir a organização que vem mantendo aquele espaço para fins de reforma agrária. As famílias resistiram à investida dos jagunços, mas estes retornaram em seguida com um forte aparato policial.

Oito viaturas da PM de Minas Gerais, comandados pelo tenente Leoni, invadiram a fazenda disparando tiros. Casas de lideranças foram invadidas e trabalhadores foram duramente espancados e torturados, com pistolas apontadas para suas cabeças. Os companheiros Dim Cabral, Nem e Rubão foram as maiores vítimas das atrocidades que aconteceram em meio aos olhares desesperados de suas mulheres e filhos. Pessoas ligadas ao sindicato rural apareceram no meio da truculência para “identificar” as pessoas que haviam repelido a tentativa de invasão no início da tarde.

Após invadir, espancar e torturar, a PM levou presos 14 lideranças: Dim Cabral, Nem, Rubão, Enério, Renato, Artur, Anoel, Joventino, Zé Roberto, Eduardo, Waldomiro, Divino Marinho e Sirley. As famílias que ficaram na fazendo receberam a solidariedade de outros acampamentos e grupos da região que apóiam a luta no campo, conseguindo assim evitar nova investida dos jagunços.

O MTL agiu rápido e destacou assessoria jurídica para acompanhar o depoimento e permanência dos trabalhadores na delegacia, pois estes corriam risco de sofrer novas torturas e espancamentos. Todos os nossos companheiros foram liberados na manhã deste domingo, 1° de agosto.

A indignação da comunidade que vive na Fazenda São Domingos é generalizada e o MTL soma-se a esta indignação. Este episódio é mais um capítulo de um processo de criminalização dos movimentos sociais no Brasil. O MTL deverá encampar a luta pela responsabilização criminal dos policiais envolvidos nesta atrocidade, sobretudo o comandante da operação, Tenente Leoni.

O MTL também repudia veementemente o papel nefasto que cumpre o sindicato dos trabalhadores rurais da região, dirigido por políticos do PT, um antro de gangsters, articulado com as forças repressivas do Estado. São, ao mesmo tempo, covardes, pois não é a primeira vez que tentam, em momentos de suposta fragilidade dos ocupantes da fazenda, invadir aquele espaço. Foi assim quando injustamente a justiça tentava encarcerar João Batista, Dim Cabral e Marilda por sua luta pela posse da fazenda São Domingos. É assim agora, quando a principal liderança do MTL em Minas Gerais, João Batista Fonseca, está internado numa UTI, por conta de um atropelamento que sofreu a menos de um mês.

O MTL co-responsabiliza também o INCRA pelo incidente, por sua morosidade na regularização plena da situação da fazenda São Domingos, cujos trabalhadores têm um projeto inovador de exploração coletiva da mesma.

Solicitamos dos movimentos sociais, lideranças, parlamentares, ativistas, enfim, todos que lutam por justiça no campo, por reforma agrária, pelos direitos humanos, que se somem nesta corrente divulgando esta nota e repudiando esta postura do poder público, da PM de Minas Gerais e destes que dinamizam no movimento sindical e popular práticas truculentas, oportunistas e pelegas.

Coordenação Nacional do MTL Movimento Terra Trabalho e Liberdade
Fonte: CONLUTAS

Incra pedirá o cancelamento de títulos que somam 3 milhões de hectares

União usará decisão do CNJ para reaver terras no país

Incra pedirá o cancelamento de títulos que somam 3 milhões de hectares. Esse é o total de terras que o órgão tenta reaver por meio de 452 ações judiciais em 6 Estados da região amazônica

Por Claudio Angelo

O Incra pedirá à Justiça de seis Estados amazônicos o cancelamento de títulos de terra que somam 3 milhões de hectares, o equivalente a dez vezes a área do DF.

Esse é o total de terras que o órgão tenta reaver por meio de 452 ações judiciais no Pará, Amapá, Amazonas, Tocantins, Acre, em Mato Grosso e em Rondônia.

A procuradora do Incra, Gilda Diniz, informou que o pedido será feito após decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de anteontem que determinou o cancelamento de 5,5 mil títulos irregulares no Pará, possivelmente frutos de grilagem de terras públicas.

A ideia é espalhar a decisão para outros Estados, a fim de acelerar o combate à grilagem na Amazônia.

Hoje, o cancelamento de títulos irregulares só pode ser feito por meio de ação judicial. É um processo demorado e custoso, e que é feito caso a caso. "Temos ações em curso desde 1993", diz Diniz.

A decisão de anteontem do ministro Gilson Dipp, do CNJ, tem o potencial de mudar esse quadro. Ela estabelece que o cancelamento dos títulos irregulares pode ser feito por decisão administrativa, ou seja, sem a necessidade de uma ação judicial.

Espera-se que os Tribunais de Justiça dos Estados sigam a decisão do CNJ, como o Pará terá de fazer (o TJ paraense havia negado o cancelamento administrativo em 2009, o que motivou recurso do governo estadual e do Ministério Público ao CNJ).

JURISPRUDÊNCIA

"É como se [o CNJ] criasse uma jurisprudência", afirmou Diniz, para quem a decisão "acelera e dá visibilidade" às tentativas de retomada de terras públicas.

A briga judicial pela posse de terras na Amazônia se arrasta desde a ditadura.

Em 1971, um decreto-lei declarou zonas de segurança nacional as terras numa faixa de 100 km de cada lado de rodovias como a Belém-Brasília e a Transamazônica. Essas áreas deveriam ser registradas em nome da União.

Eram 195 milhões de hectares, uma área maior que a do Amazonas. Parte deles foi ocupada irregularmente, parte foi grilada.

"Nos casos que a gente pede [a retomada], são grandes áreas ocupadas por um só, ou o cara só tem o título", diz Diniz. O objetivo do grileiro é especular com a terra, vendendo pedaços dela ou dando o título falso como garantia de empréstimos.

A grilagem é a principal causa de violência no campo na Amazônia.

Um caso famoso é o do título de 3.000 hectares do fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, sobre uma terra do Incra que abriga um assentamento, no qual trabalhava a missionária americana Dorothy Stang.

A disputa levou ao assassinato da freira em 2005. Taradão foi condenado em maio a 30 anos de prisão por ter encomendado o crime. O título foi cancelado.


Outros 4.000 títulos podem ser cancelados

Depois de o Conselho Nacional de Justiça cancelar mais de 5.000 registros de terras do Pará, outros 4.000 do mesmo Estado podem ter o mesmo destino.

Foram tornados nulos os registros das áreas que superavam os limites legais da cessão de terras públicas a particulares -hoje, o limite é de 2.500 hectares.

Estima-se que existem outros 4.000 registros que, apesar de não serem de extensões superiores às previsões legais, também foram bloqueados pelos cartórios do Estado a partir de 2006.

A comissão que analisa a grilagem de terras no Pará pediu a documentação completa desses registros. Se a cessão nunca ocorreu e seu registro for na verdade fraudado, ele deve ser cancelado pelo Judiciário.

(JOÃO CARLOS MAGALHÃES)

Fonte: Jornal Folha de São Paulo,(21.08.2010)

"O nosso século é fascista"

por Varela Gomes

. O título, entre aspas, é aquele que o historiador Manuel Loff escolheu para capa da edição do seu monumental e conclusivo trabalho de investigação sobre o eurofascismo, em geral, e, em especial, sobre os fascismos ibéricos, salazarismo e franquismo. A frase traduz a assumida convicção político/ideológica dos dois ditadores peninsulares, Salazar e Franco, veemente afirmada/saudada no período áureo das vitórias militares do nazifascismo germânico; a "época fascista" como o autor designa os anos de 1936 até ao fim da II Guerra Mundial, em 1945. Na realidade, o intervalo de tempo coberto pela investigação de M. Loff estende-se, principalmente a jusante, quase até aos dias da publicação das mais de 900 páginas da obra, em Abril 2008; após 13 anos de exaustivas pesquisas por arquivos e academias europeias. De igual modo, o espaço geográfico extravasa a Península Ibérica e vai cobrir experiências de regimes fascistas/colaboracionistas na França, Hungria, Noruega, Croácia, etc.

Noutra perspectiva, pode dizer-se que o autor revela, logo com o título escolhido, o escopo fundamental do seu trabalho; ou seja, demonstrar que Franco e Salazar foram confessos e fervorosos fascistas desde a primeira hora; ambos saudaram a Nova Ordem nazi-fascista como o advento de um futuro radioso, de um novo mundo, governado por regimes autoritários/totalitários; no qual eles teriam a glória de inscrever o franquismo e o salazarismo como regimes fundadores da nova era.

Para demonstrar a sua tese (postulado axiomático, hipótese de trabalho, como se queira), M. Loff reuniu um enorme acervo documental, asserções dos próprios ditadores e respectivos núcleos de acólitos fanáticos, menções (des)honrosas de fuheres e intelectuais da extrema-totalitária europeia, etc.. Provas irrefutáveis. QED – quod erat demonstrandum.

Posto isto, pareceria que uma obra desta importância – académica e cientificamente irrecusável – estivesse destinada a ser uma referência obrigatória para estudiosos e outros apaixonados pela época e pelo tema. A edição é de Abril 2008, recorde-se; dois anos são passados; estamos a meio das solenes comemorações da centenária República. E, no entanto, exceptuando os círculos de estudo e investigação histórica não-alinhados com o "politicamente correcto", pode dizer-se ser quase nula a atenção mediática relativa ao ensaio/tese de M. Loff. Em flagrante contraste com o alvoroço que saúda a menor produção historiorista desde que exiba chancela liberal/reaça. Veja-se o entusiasmo da "independente" comunicação social em relação à medíocre/facciosa História Contemporânea , da autoria de Rui Ramos (ver Alentejo Popular, números 331 e 332).

São centenas/milhares os "especialistas" do fascismo português. Particularmente, "daquele que nunca existiu". Ora é esse numeroso bando de contrafactores da história contemporânea quem dispõe, em virtual exclusivo, dos palcos mediáticos e abusa da nossa paciência nas colunas da imprensa. Enfim, isso diz o suficiente sobre uma sociedade civil, onde a corrupção intelectual é a causa/produto do sucesso.

Manuel Loff não tem dúvidas quanto aos anti-corpos que a tese mestra do seu trabalho iria provocar. No capítulo final da sua obra, "Várias Conclusões e Um Epílogo", diz ele: "Existe uma coerência global no conceito e no projecto na Nova Ordem nazi-fascista. Essa coerência tem um valor de análise muito importante nas experiências históricas do Salazarismo e do Franquismo. Tornou-se (por isso) necessariamente incómoda e intolerável no mundo pós-1945 (...) os próprios dignitários das duas ditaduras ibéricas passaram, desde então, a negar e a renegar a evidência ofuscante das afinidades político/ideológicas dos respectivos Estados Novo/Nuevo, com os criminosos regimes da Alemanha nazi e da Itália fascista. Essas desesperadas e patéticas tentativas em limpar e rescrever um passado próximo indigno continuaram nas décadas seguintes". Sublinha o autor: "(...) levantadas por investigadores, mas também por dirigentes políticos, opinadores mediáticos e cidadãos comuns, sobretudo nos últimos trinta anos".

Eis aqui onde dói, o ponto nevrálgico, a chave para a decifração da causa/causadora que condenou ao ostracismo o trabalho de investigação de M. Loff: a ter concluído e demonstrado, que na contrafacção e branqueamento do passado histórico fascista, está também implicada a democracia vigente.

Sabe-se, sabemos todos, que não é apenas o historiador Manuel Loff quem está votado ao ostracismo neste regime hipócrita que venho, há muito, apelidando de filofascista. Além disso – que é tudo – trata-se de um investigador probo, um analista honesto, não enfeudado ao poder e à ideologia dominante. Ora isso é considerado intolerável, pelo "tolerante regime bífido" que governa o país vai para demasiado tempo.

A classe política burguesa que se apoderou da II República Democrática não tolera (sabe-se cá muito bem porquê) que a investigação levada a cabo pelo autor estabeleça de forma insofismável a existência de uma irmandade ideológica amarrando ao mesmo pelourinho da história, nazis, fascistas, franquistas e salazaristas... confessos partícipes numa Nova Ordem, que se auto-descreviam como revolucionários, condenando violentamente a América plutocrática, etc. Foram "autênticos camaleões políticos, recorrendo ao mais despudorado pragmatismo, cujo objectivo único era a sua sobrevivência" (pág. 904). Os democratas acidentais da 25.ª hora de Abril, mais os da 1.ª hora de contra-revolução novembrista, não perdoam ao autor, esse e outros comentários de lesa-salazarismo.

O camaleão/campeão, Salazar de seu nome, em 1945, logo depois de consumada a derrota nazi, passou a definir o Estado Novo como a "verdadeira democracia"! É preciso muita lata e falta de vergonha! Esse era o mesmo homem que durante quinze anos, reiteradamente, declarava morta a democracia! Mas então não querem lá ver que é desses mesmos camaleões oportunistas/pragmáticos que é feita a elite política que por aí se governa, desgovernando-nos? E que o chefe em exercício almeja igualar o "saudoso" no oportunismo da sobrevivência no mando político?

A obra que estamos compulsando oferece campo vasto e fértil para cotejar situações e atitudes actuais (II República Democrática) com o período da "República Corporativa e Anti-Democrática", conforme recente definição do fascismo salazarento, em publicação comemorativa do Centenário.

Está hoje consolidado o aforismo de que "toda a história é história contemporânea". Na mesma linha de pensamento, poder-se-ia acrescentar que "toda a história é história comparada". O tratado de M. Loff cumpre essas duas consignas; deliberadamente, ou por ter ido acontecendo, tanto importa. O facto é que são inúmeras as pistas comparativas que surgem ao longo do texto; umas apenas curiosas, outras merecendo atenção mais cuidada. Observemos algumas, de passagem, a título de exemplo.

2.1 – O "novo" (cap. 2, alínea 1, pág.115):

A obsessão nazi/fascista pelo "novo" permite interessantes considerações, reminiscências e paralelismos. Era a Nova Ordem, o Estado Novo, a Nação Nova, a Nova Era, o Homem Novo, o Novo Mundo, etc.; a transformação redentora, a batalha ente o velho e o novo, etc., etc.. Todo o discurso/propaganda nazi/fascista – Hitler, Mussolini, Franco, Salazar – repete até à exaustão a miragem de um mundo novo, a mudança totalitária irreversível, o fim das democracias; enfim, o da História.

Mas então, não é que esta rapaziada demo-modernaça do séc. XXI também tem a boca cheia do novo! (Na cabeça só têm uma grande ignorância e no coração uma imensa ganância). Ele foi – ainda estarão nessa? – o neo-liberalismo, os neos (velhos) conservadores, a nova liberdade global, a nova ordem mundial (Outra? Ou sempre a mesma?). Sócrates torna-se um cromo, uma imitação de fancaria da eterna mudança (incluindo a marcha atrás), com a sua obsessão nas novas tecnologias, novas oportunidades (Novas roubalheiras?), na inovação como panaceia para os défices da competência e da inteligência. Mas antes dele, já houve Cavaco e Soares, qual deles o mais re-novador da velha receita do antigamente: o povo dos brandos costumes que pague a crise e aperte o cinto, pois a isso já vem acostumado desde a Nova Era do Manholas de Santa Comba.

A semântica era para os gregos a "arte da significação". Para nazis, euro-fascistas, filofascistas, neo-democratas, neo-socialistas, novíssimos conservadores, economistas da Wall Street e da Opus Dei, etc., a semântica converteu-se no "malabarismo do significado". A cambalhota semântica de Salazar em 1945, transfigurou o Estado Novo em "verdadeira democracia"; já antes, a ditadura fora mascarada de "revolução nacional". Mas "atão" não é que o Soares re-inventou a "verdadeira democracia" depois da conspirata com o imperialismo mais a ralé fascio/pidesca? E não é que chamou "verdadeira revolução" à contra-revolução de Novembro, em que foi peão de brega do Carlucci!? Eles aí estão na II República, os malabaristas da semântica, sementes da mesma raça do neo-velho séc. XX dos regimes autoritários/conservadores (definição do regime salazarista, por J. Sampaio em 2004).

3.1 – Revisão historicista da História (pág. 205):

Em ambos os regimes ibéricos reinava o acordo quanto à manipulação do passado histórico como instrumento político. O autor demora-se em evidenciar a assumida postura revisionista da história passada e a manipulação do presente vivido, através de documentos oficiais, correspondência, de declarações dos próprios chefes das nações fascistas triunfantes na década de 30.

Em Portugal, Salazar e o salazarismo assumiam a função doutrinadora da história. Por decreto! (n.º 21103 de 15.4.32), onde se estipulava "competir ao Estado fixar as normas a que deve obedecer o ensino da História" (...) "a finalidade não é ensinar todas as verdades, mas apenas as que servem a Pátria". Os cronistas do regime excediam-se na bajulação: "a contra-ofensiva revisionista prossegue até à vitória final" (J. Ameal, 1941.) O historiador oficial, António Mattoso, impunha a sua mal-afamada História de Portugal, que fez lei nos liceus e faculdades até vésperas do 25 d'Abril. No "Diário de Notícias" pontificava Augusto de Castro, vendendo o génio do Manholas em pagelas beatificadas.

"Atão" não é que me vem à lembrança a homenagem prestada (nos anos 90, da era cavaquista), a essa glória do jornalismo nacional/fascista, pelo neo-director Bettencout Resendes? O homem foi buscar o busto do salazarista ao lixo (para lá atirado pela revolução) e foi, solenemente, re-entronizá-lo no átrio do jornal. Lá está, novo monumento ao revisionismo historicista, homenagem do jornalismo da Nova Democracia.

Ainda lembro o neo-historiador José Mattoso, muito acarinhado pelos media neo-democratas. É filho do acima citado António. Tal como o pai escreveu uma História de Portugal (em 7 volumes!); tal como o pai comunga na tese historicista: "sobre os factos (...) pode ser que seja melhor esquecê-los que lembrá-los".

As pistas de reflexão que M. Loff abre, projectam nos dias de hoje a sombra cinzenta da evolução na continuidade. A revisão de História continua a ser assunto do Estado? Ou, pior ainda, fica sob controlo do partido no poder, como parece ser agora o caso do ensino oficial da História Contemporânea Portuguesa?

5.5 – Guerra de Espanha, "derrota das democracias" (pág. 417):

Ambos os ditadores ibéricos rejubilaram com "a derrota das democracias", proclamando essa interpretação para a vitória das hostes fascistas, em solo espanhol. "(...) as democracias tinham sofrido uma tripla e formidável derrota estratégica, política e moral" (Franco, 1940). Salazar descrever-se-ia (discurso na Assembleia Nacional, 22.5.39), como vencedor: "Dispendemos esforços, perdemos vidas, corremos riscos, partilhámos sofrimentos... Vencemos, eis tudo".

Ora eu – autor pouco lido – escrevi sobre a Guerra de Espanha em 1987 (2.ª edição, em 2006). Aí tomei partido pelo campo republicano e glorifiquei os portugueses que nas suas fileiras combateram e se sacrificaram pela honra de todos nós. Jamais qualquer deles foi alguma vez lembrado nesta novíssima democracia reaça/burguesa. Em contrapartida (lógica), para fascistas do antigamente e do presentemente, não têm faltado as homenagens e munificências dos sucessivos governos constitucionais. Recordando/comparando: Numa enxurrada de 54 pensões vitalícias concedidas a "cidadãos por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País" ("Diário da República", n.º 239/87 e n.º 10/88, governo Cavaco), entre militares heróis da guerra colonial, da repressão fascista, etc., noto o nome de um oficial que sabia já falecido (para pensão vitalícia não estava mal!). Informei-me. A pensão era concedida à viúva do coronel M. Santos, por 50 anos antes (em 1937/8) ter participado em Espanha, integrado no exército de Franco, na vitória do fascismo sobre as democracias. A modernaça democracia portuguesa mostra a sua raça. Como queda demonstrado!

Capítulo 8: Perante a Colaboração e a Resistência:

São 195 páginas (da 705 à 898) procurando identificar a posição dos fascismos europeus nos anos 40, perante o colaboracionismo com o ocupante nazi e a resistência armada antifascista que o combatia. O autor dedica especial atenção à "posição colaborante" das duas ditaduras fascistas ibéricas; mas inclui no seu estudo os muitos países europeus invadidos e ocupados em 1940/42 pelos exércitos do Eixo nazi-fascista.

Resultou numa massa impressionante de documentação analisada, de dados e informações inéditas suficientes para diversas publicações autónomas. Todavia, o objectivo do autor é mais directo: fundamentalmente, pretende amarrar governos e facções fascistas, respectivos chefes e mentores, a uma ideologia nefasta e criminosa, responsável pela maior tragédia humana do séc. XX. Em simultâneo, tentar exorcizar o seu legado/memória que permanece entranhado na mentalidade de alguns sectores dominantes das sociedades contemporâneas. Como é o caso da classe burguesa na nossa centenária República. Tenho-o dito e repetido, antes e depois de Abril 1974.

O Portugal salazarista foi aliado fiel, retaguarda segura do levantamento fascista em Espanha. Salazar rejubilava com a derrota das democracias em solo ibérico, auto proclamava-se vencedor! A diplomacia salazarenta esteve sempre alinhada pela Nova Ordem nazi; foi das primeiras a reconhecer as anexações alemãs e os governos fantoches colaboracionistas. O mútuo embevecimento entre Lisboa/Salazar e a França Nova/Pétain ainda hoje mete nojo, ao reler as páginas documentadas de M. Loff sobre essas relações de comunhão ideológica. O embaixador português em Vichy (Caeiro da Matta, íntimo de Salazar) insultava pela rádio os resistentes da França Livre, apelidado-os de terroristas cobardes. Para o governo salazarista, o desembarque na Normandia foi designado de "invasão", até as forças aliadas estarem prestes a entrar em Paris. Depois da capitulação do nazi/fascismo, em 1945, a Península Ibérica tornou-se o porto de abrigo de milhares de criminosos de guerra, desprezíveis despojos humanos, acarinhados e protegidos durante dilatados anos por Salazar e Franco e suas pandilhas de fascistas. Consoante conclui o autor (pág.780): "Nada de essencial opunha o Salazarismo, no campo da ideologia e da visão da guerra, à ideia da colaboração (...) O ditador estava convencido de ser possível encontrar colaboradores na elite portuguesa". (Mais que certo, comento eu).

A primeira realização da Nova Ordem europeia imposta pelo Eixo, foi a Croácia nazi (ustacha), proclamada independente em Zagreb, em 16 de Abril 1941. Foi decerto, a este modelo de protectorado colaboracionista que Salazar estava disposto a acomodar-se, pois acreditava estar assistindo ao primeiro passo da instauração da Nova Ordem Mundial nazi/fascista. Com efeito, sucessivos regimes de idêntico formato iam surgindo pela Europa fora ao ritmo do avanço das botas conquistadoras da Wehrmacht, perante o entusiasmo dos ditadores ibéricos e respectivas elites católico/conservadoras. Além da Nova França de Pétain, a Noruega de Quisling, Dinamarca, Bélgica e Holanda, Hungria, Checo-Eslováquia, Roménia, Bulgária, Grécia, vários retalhos nuns Balkans desmembrados, até uma efémera Ucrânia colaboracionista/nazi! A mundovisão do Manholas Salazar e do compadre Paco Franco parecia estar nascendo para a eternidade.

Manuel Loff fornece na sua monumental investigação, informação aterradora sobre o que foram as experiências da Nova Ordem Mundial, nos Estados Novos nazi/fascistas. E contudo, numa perspectiva hodierna, aquilo que de mais aterrador se pode constatar e concluir é que a Nova Ordem Global Demo-Capitalista – que, efectivamente, impera e domina em todo o mundo – apresenta inúmeros laços de hereditariedade ideológica e comportamental com esse (por suposto) tempo de trevas... Mas, para cujo branqueamento trabalham afanosamente governos ditos democráticos, respectivos meios de comunicação, mais as ditas sociedades civis. Eles cá pelo sítio, até conseguiram eleger Salazar, em concurso televisivo, "como o maior português da todos os tempos"! Os filofascistas lusitanos mostram a sua raça!

A tese desculpabilizante da "inevitabilidade do fascismo" terá algo que ver com o bombardeamento de Belgrado em 1999 pela NATO, com o ressurgimento dos ustachis na Croácia, após o neo-desmembramento da Yougoslávia, com outros movimentos neo-fascistas por toda a Europa, pelo palhaço Berlousconi na Itália, o palhaço Alberto João na Madeira, pelo paranóico Sócrates e sua pandilha de boys em Portugal? Sim, tem tudo a ver. Setenta anos depois é a mesma gente, fervendo em ódio ao povo trabalhador, com ganância e desonestidade ilimitadas. A história repete-se, sempre se repetiu. É "o eterno retorno", na expressão desesperançada de F. Nietzsche.


Deve ler-se (e reler) o último capítulo de O Nosso Século é Fascista . São só 30 páginas, onde Manuel Loff deixa transparecer um aviso inquietante às gerações próximo/futuras do chamado mundo livre sob tutela americana: a Nova Ordem Global Demo-Capitalista, cada dia que passa, cada ano que finda, mais se assemelha à (velha) Nova Ordem Nazi-Fascista, do século XX

05/Agosto/2010
  • Manuel Loff, O nosso século é fascista, Campo das Letras , Porto, 2008, 956 pgs., ISBN: 978-989-625-256-4

    Do mesmo autor:
  • Memória ideológica no centenário da República
  • Uma História contemporânea de Portugal (segundo um moderno cronista da Corte)